"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

domingo, 30 de agosto de 2009

A Fuga

Uma luz clara e perfulgente. Era o que sibilava longe quando abri os olhos. Sibilava convidativa e inerte. Uma luz. Precisei de um tempo para os meus olhos se acostumarem à penumbra. Frações de segundos até assimilar as dimensões negras de onde me encontrava. Dimensões em escala de cinza. Apáticas e insalubres.Tornei a repousar no escuro. Pude, no ato, sentir as pálpebras secas e crespas deslizarem sobre o olhar fugitivo. Não queria acordar. Não queria voltar àquela realidade. Queria me reservar o direito do sonho. Queria. Apenas queria o sonho... Permaneci perdido em minha própria escuridão, que superava a densidade obscura do chão que me continha. Não demoraria a perceber que preciasava acordar do meu sono letárgico. O sonho se fora. Já estava em outra frequência.

(Pausa necessária à reflexão do desejo)

Debati-me em meu íntimo, não querendo conter - em definitivo! - a verdade a que fora exposto: era hora de levantar. Era hora de esquecer o conforto do estado torpe. O conforto dos traços luzidios do meu sonho ilibado. Não me restava outra escolha. Era a hora de voltar à vida. Antes de expor outra vez minhas pupilas à luz bruxuleante, tentei captar a essência de minha condição límbica. As mãos provaram da textura da terra sob meu corpo. Fria e farinácea. Pude senti-la como parte de mim, do lodo que escorria de minhas entranhas e no qual agora estava eu, irrefutavelmente imerso. Meu lodo, meu limbo, meu eu mais agônico e sincero.

O cheiro ácido que me invadia o nariz não se demorou. Logo já não sentia nada além de um resquício de éter maligno. Nada além de uma fração ilógica dos cheiros que ainda me faziam lembrar do sonho perdido. Na boca? - Somente o gosto de sangue digerido e a lembrança do beijo não dado. Lembrança presa em cada gota de cuspe. Cada gota desperdiçada em minha pele contaminada pelo barro emético que me tomava. E o silêncio. O puro e melódico silêncio.

(Suspiro)

Outra vez a luz. Agora já não custei a adptar-me. Era uma condição irrevogável. Era uma ação necessária. Deveria agora levantar e tentar me recompor. Era a hora de crescer. Sentei. Olhei para os lados. Olhei para todos os lados! - e nada além de um escuro abafante e uma luz ao longe. Que me caberia fazer? Ora, resposta imediata. Levantei-me. Quase perdi o equilíbrio. Quase retornava à imundície da qual me libertava no momento. À escuridão saprófaga da qual eu vinha. Cair outra vez? - Não. Não fazia sentido. Já havia levantado e não me permitiria tal vacilo. Quase perdi o equilíbrio. Mas abri os braços como quem deseja o vôo. E o desejo de ir embora me manteve de pé. Respirei fundo. O ácido voltava a incomodar. Não menos do que o frio que se mantinha em meu corpo nu. Estava desprotegido. Nu. Somente o corpo e o barro. Pele e sujeira que eu jamais conseguiria arrancar. A sujeira das quedas antigas. A sujeira que hoje me servia de segunda pele. O barro solidificado. A armadura crua e sensível.

Respirei. E eu nada mais era do que ácido e pó.
Respirei. Cada fração de ar que conseguisse captar me seria necessária. Precisava garantir que teria sustento físico. Garantir que não desfaleceria quando já não tivesse o sustento da emoção. Quando tudo fosse mais orgânico do que racional. Estava escuro. Um escuro opressor e diáfano. Um escuro que se traía pela própria existência. Por ser apenas a ausência da luz. Estava escuro, mas havia uma luz! E, obviamente, como quando corri ao encontro do mundo fora do útero materno (ávido de liberdade e desejo), correria até esta luz. Era mais do que qualquer razão. Era apenas o instinto. Única e exclusivamente o instinto. E o que me restava senão ele?

Comecei a caminhar. Era um corredor longo. As paredes eram distantes umas das outras. Um túnel negro de lembrança e vontade. Hilário imaginar que me pareceu tão comum. Estranhamente comum. Não procurei apoio em nada. Tinha que caminhar sozinho. Eu sabia disso. Eu sabia que, para arrastar-me até a luz, se as pernas não fossem o bastante, os braços deveriam sê-lo. Eu não tinha outra escolha. Ou eu chegava ao fim do túnel, ou eu chegava ao fim de mim mesmo. Emérita escolha: o fim do túnel. Os pés pareciam pregados ao chão. Cada passo que eu dava me custava muita energia. Mas eu continuava. Reunia forças. Não sei bem de onde as conseguia, mas sei que elas existiam. E sem preocupar-me muito com a dor, comecei a caminhar. Podia sentir o sangue escorrendo de mim. Sentir partes do meu corpo ficando ao longo do trajeto. Partes do meu corpo ficando no barro, ficando para trás. Já não me pertenciam. Já não eram, por inteiro, partes de mim. Que ficassem, pois, para trás! Mesmo que me custasse a pele e o sangue. Ah, os pés! Estavam machucados. Há muito foram perfurados e agora voltavam a sofrer. Mas era necessário andar. Ficar parado não me traria a certeza da mudança. Talvez precisasse sentir o ácido em meus pulmões para crer que existia o que perseguir. Era necessário andar. Nem que fosse pela vontade de fugir de toda minha sujeira. A sujeira na qual submergi por escolha. Por não saber que era sujeira. Por não saber que era (e é) demasiadamente perigoso mergulhar.

Caminhar era um tanto quanto difícil. O chão estava molhado. As pedras aciculadas machucavam os cortes pre-existentes e agrediam o que ainda me restava de pele hígida. Escorregava, vacilante, equilibrando-me a cada passo para não entregar-me ao cansaço e voltar ao lodo do qual eu vinha. Equilibrava-me pela ânsia de chegar ao fim deste meu caminho ignoto. Não podia apressar o passo. Se tencionasse correr, tenho certeza que cairia de novo. Passo a passo, certamente, chegaria - apesar do maior tempo que me seria roubado. E indiferente ao terreno, o desejo de ir embora me mantinha de pé e eu seguia irresoluto. A luz me esperava. Podia senti-la. Podia senti-la. Podia senti-la.

(Momento reservado à inquietude dos olhos eritemáticos)

Portas? - Sim. Portas. Não reparara que as paredes laterais continham muitas portas. Eram sedutoras. Sentia-me impelido à busca. Talvez me levassem para um outro lugar. Uma porta sempre leva a algum lugar. É sua condição prima: Ser o referencial de existência de um outro mundo que está do outro lado. Um universo novo de escolhas e oportunidades.
Fechei os olhos. O crispar das pálpebras já não incomodava tanto. Tornara-me insensível à sua agressão. Como sempre. Como tudo. O que fazer? Seria válido gastar minha inquieta energia numa tentativa louca de encontrar uma porta que me permitisse fugir rápido daquele lugar? Quanto me custaria acreditar que existia mesmo um jeito menos doloroso de passar por tudo aquilo? Abrir os olhos já não era também tão abafante. Já não temia aquela realidade. Aprendera a me conformar com a minha condição. Se era realmente necessário que fosse assim, pois bem! Que fosse.Entreguei-me ao desejo ilógico de sumir de mim mesmo e fim.

(Acesso de loucura e frustração)

Sentia medo. Sentia muito medo. O ar se tornara rarefeito em segundos. Mas eu já não queria pensar. Nem conseguiria, caso pudesse. Era necessidade orgânica de vida. E, também, necessidade orgânica de morte. Eu corria. De um lado ao outro. Sentindo o sangue fluir veloz por minhas veias. Sentindo o ácido rasgando as minhas narinas. Sentindo o peso do lodo. Sentindo que em breve já não sentiria coisa alguma... Debatia-me pelas paredes. Contra as portas. Precisava encontrar um caminho. Estava desesperado por um caminho. Apenas um que me levasse para longe de toda aquela imundície. Era só o que eu queria: um caminho.

Mas não encontrei. Tentei abri-las. Empurrá-las. Derrubá-las. Nada. Nada. Nada. Estas portas não levavam a algum lugar. Não eram portas comuns. Se do outro lado me esperava uma outra luz além daquela que agora já não estava tão longe, eu não saberia dizer. Não consegui fugir. (Não achei mesmo que conseguiria, para ser muito sincero. Seria inopinadamente fácil. Não era para mim. Não era para meus pés). Não adiantaria mais querer sumir de mim mesmo.

Não consegui fugir. Mas, na verdade absoluta, de que me valeria não tentar? O sangue? A economia de forças? Ora, elas acabariam a qualquer instante. Preferia não conviver com a culpa de não ter tentado. Esta, em suma, eu não suportaria.

E de repente me sobreveio o espasmo da respiração. Queria o ar. Não porque cada parte do meu corpo já reclamava sua falta, mas sim pela ânsia do grito. Queria apenas a força para gritar. Apenas o desejo do grito! Insanamente abrir a boca e, em frequências desconhecidas, bradar todas as minhas angústias em um grito. Quer fosse ele de coragem, quer fosse de desespero. Frequências desconhecidas que, em ressonância, estremecessem meu corpo. Que me desintegrassem, irresolutas, em um véu de lama e sangue.

E eu gritei.

(Respeito ao momento do grito)

...

E, enfim, eu entendi: as portas estavam ali para que eu me certificasse de que deveria caminhar até o fim. Não existiam atalhos. Não existiam caminhos mais curtos, mais fáceis ou mais tranquilos. Não existia para onde ir senão a luz que me aguardava no fim de tudo. Ou caminhar ou estagnar - Eis a escolha. Não existiam atalhos. Não existiam atalhos. Não existiam atalhos. (Precisava me convencer disso). As portas não me levaram para o universo de paz que me esperava do outro lado. Mas as tentativas ávidas de fugir me aproximaram da luz. Ter tentado escapar me deixou mais perto do meu fim já predito. A tentativa foi suficinte para me deixar próximo de minha esperança de fuga. Quando dei por conta, já estava próximo o suficiente para senti-la. Ah, a luz. Ela estava lá. Ainda não se apagara. Ainda me esperava inerte. Sibilando convidativa. Agora mais perto. Agora muito mais perto. Tão mais, que eu podia senti-la em minha pele. Seus raios desenhando em meu rosto a sombra do corredor sujo. Podia senti-la. Podia senti-la. Podia senti-la.

Mas algo me fez tremer. Não sei se de medo ou curiosidade. Não sei se neste ponto do trajeto eu seria capaz de sentir medo. Mas me despertara do estado hipóxico em que repousava. Um sombra. Um contorno bem definido. Movimentos. Um ser humano - Ao menos, era o que a sombra sugeria.Alguém que me esperava à sombra da luz? Alguém para me ajudar, por piedade, a sair daquele lugar gélido? Um ser humano. Um igual. Entretanto, dessa vez fiz diferente. Duvidei. Não me enganei. (Não achei mesmo que o faria, para ser muito sincero. Seria inopinadamente fácil. Não era para mim. Não era para meus pés).

Reuni coragem. Inventei vontades e reformulei emoções.

Os pés já não respondiam. Apenas segui em frente. Em direção ao contorno fosco que se desenhava próximo à fonte de luz, que eu não conseguia identificar com precisão a origem. Ele se moveu em minha direção. Parei. Ele também parou. Podia ver o caminho atrás dele. Era um corredor. Ele também estava em busca da luz. Ele também caminhara na direção daquela última esperança. Não sei por quanto tempo estivera ali ou desde quando me observava. Mas, certamente, seguia cauteloso. Repetia os meus movimentos. Não vacilava. Como eu, obviamente, tinha medo. Seria seguro continuar?

Não fazia mais diferença. Não mais.

A aproximação foi lenta, porém progressiva. Um movimento. Um passo de cada vez. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Caminhava com cuidado e destreza. Como não era próprio de mim. Como nunca fora próprio de mim. Mas a situação exigia. E eu deveria me adaptar. Deveria me preservar, uma vez que fosse. Era sobrevivência. Era instinto.

Esquerda. Direita.

Recuei um pouco. Fiquei confuso quando o contorno fosco tornara-se vagarosamente nítido. Como seria possível? Eu não podia acreditar na realidade que gritava em frente aos meus olhos cansados. Como seria possível? - voltei a me questionar. Um igual... Um igual... Um igual.

Não. Não era um igual.

Tentei captar a essência daquele meu momento epifânico. Examinei os contornos do corredor. Estudei cada detalhe de toda aquele grande caminho, agora iluminado e cheio de minhas próprias necessidades. Estudei de um lado ao outro. Estudei cuidadosamente e então me certifiquei de que o meu palpite procedia. Enfim, bastava-me apenas entender o por quê de toda esta caminhada obscura. Aproximei-me outra vez do meu algoz. Agora, claramente, podia contemplar a podridão da figura que, de certo, não me machucaria. Pude sentir a sua solidez. Enconstamo-nos as mãos. Sim! Ele existia! Não era uma alucinação. Eu podia provar da sua matéria. Da sua textura. Mas não senti sua respiração. Apenas pude perceber o descompasso da minha. Não senti seu cheiro, nem tampouco o seu calor.

Uma figura. Um semblante. Um ser humano. Não um igual, mas Eu mesmo.

Somente a minha imagem distorcida. Eu mesmo... Ofegante tentei reconhecer os traços do meu rosto naquela projeção virtual de um corpo esfacelado. Tentei, sequioso, perceber naquele reflexo disforme a minha idéia. Conseguira me reconhecer por pouco. Pelo instinto. Sim, eu estava muito diferente. Não conhecia aqueles olhos tão secos. Aquela pele tão suja. A escuridão que me revestia. Fitei os traços com afinco numa tentativa insana de encontrar indícios de vida humana. Qualquer indício de alma.

E, obviamente, encontrei.

Sentia que parte do que eu fora um dia permanecia incólume em mim. A consciência do meu eu mais íntimo e intocado. Residia a essência. E eu podia senti-la. Podia sentir que algo - ostensivamente - sobrevivera a todo aquele caminho obscuro. Que o último resquício de humanidade que continha me fora suficiente para chegar até ali e me identificar como alguém. Um corpo. Uma mente. Eu mesmo.

Nada além disso.

(Choro exigido pela intensidade da descoberta)

O que fazer agora? Tudo, enfim, acabara? Não. Eu sabia que não. Seria ironicamente desnecessário. Não era para mim. Não era para meus pés. O resquício de vida simbiótica que vegetava em minhas entranhas conhecia o destino prometido. Não acabara. E eu sabia o que fazer.

Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita.

Aglutinei toda a coragem que me fora concedida pela caminhada. Coragem que sequer sabia possuir. Era o momento mais importante de toda aquele trajeto obscuro. Era o fim. Já não me cabia voltar ao lodo de onde viera. A tendência era seguir em frente. E habitava em mim uma certeza irrefutável: A felicidade me aguardava ansiosa. EU já podia sentir a sua vibração. Mesmo estando sujo, cansado e desanimado. Ela me esperava! E este tão confortante sentimento me revestia com a força de que eu precisava para não me importar com os cortes, ou mesmo a dor. Já não me icomodavam mais. E eu me preparei para meu último ato naquele caminho que parecia não terminar. Respirei. E eu já não era apenas ácido e pó. Era também lágrimas e sangue. Respirei. Cada fração de ar que me invadisse os pulmões seria necessária. Tudo era tanto orgânico quanto racional. Dois objetivos que convergiam para um único ponto. Era um corpo e uma mente. Era eu mesmo, desejoso por liberdade. A liberdade, que enfim encontrei e muito próximo estava de possuir.

Abri os braços como quem deseja o vôo. Era este o momento de partir rumo ao infinito. E eu fui ao encontro de minha felicidade.

Senti a aproximação de minha imagem disforme. Mais veloz do que os meus prórpios pés. Mais ansiosa de mim do que eu jamais pudera imaginar que estaria. E eu fui ao encontro dela. Podia apenas sentir o sangue escorrendo de cada parte do meu corpo nu. Importr-me-ia agora com a dor? Daquela última tentativa dependia minha vida. E eu não desistiria tão fácil. Ora, chegara até ali. O único caminho a ser seguido era este. Eu não tinha escolhas. Era correr ou morrer. E eu corri. Suor e barro. A pele reclamava. O ar rasgava minhas narinas. Sequer pude manter os olhos abertos. Correra como nunca fizera. Com a vontade mais pura da alma. Correra tomado por todos os desejos mais loucos e os sentimentos mais desesperados. Correr. Apenas pela certeza de que logo ali estava a luz de que necessitava.

O choque foi doloroso. Mas não fui detido pela solidez do meu reflexo saudoso de mim. Encontrei-o. Entregamo-nos um ao outro e voltamos a ser um só. Pude sentir que me completava. E, enfim, eu o reencontrei. Agora estava em mim outra vez. Agora éramos apenas um. Um Eu, um ser digno e completo.

Luz. Vento. Paz.

Eu estava certo. Entendera, por inteiro, o que me acontecia. Não fora em vão tanto sangue derramado. Não perdera tempo e energia numa busca cruel e infundada. Já podia sentir o gosto da queda. Os estilhaços que me perfuravam todo o corpo não me impediram de seguir rumo ao céu de luz que me aguardava. Eu sangrava, suava, chorava, mas não me importei... Eu estava livre.

E sentindo o vento limpar os olhos e a pele, eu pude compreender, em definitivo, que chegar ao fundo do túnel e ao fim de mim mesmo era uma só coisa.

Rafael Casal / Agosto de 2009