Não lembro exatamente do nosso primeiro contato. Nem como, nem onde e muito menos por qual exato motivo. Mas, certamente, ele fora aprazível, porque desde sempre tive plena certeza de que você estaria comigo. E apesar de, ao tempo, não compreender por completo a dimensão do que me ocorria, convencido estava de que você era diferente de todos aqueles que, contigo, invadiram minha rotina.
Sim! - Um dia especial que se perdeu nos limites de minha memória não-declarativa.
De fato, as datas pouco importam no advento do tempo e sequer consigo marcar o momento específico em que seus olhos repuxados e seu sorriso nipo-brasileiro transformaram meu mundo. Contudo, desde então, tudo que não envolve você muito pouco me interessa.
.
E na ausência da lembrança real, limito-me a reinventar, numa íntima fantasia, este belo dia em que saimos de nossos vôos solitários e entregamo-nos ao gracejo de voar em revoada.
Este belo dia.
Este nosso encontro não-marcado.
Leve, como a brisa de um dia morno de outono.
(...)
De início, os dias nos foram generosos. Horas e horas divididas. E mesmo que fosse por uma imposição da vida, sempre fora delicioso desfrutar de sua companhia. Repartimos tudo. Os medos, as angústias, as frustrações, as vitórias e até o último biscoito recheado do pacote.
Dividimos o tempo e o espaço.
Dividimos a piscina.
E, quando mais urgente me foi, você me mostrou que eu poderia segurar em sua mão. E mais digno ainda: que eu poderia nadar sozinho e segurar na borda lisa de ladrilhos, pois esta mesmo escorregadia, daria-me a segurança de que tanto necessitava.
Confesso que estava me afogando. O fundo parecia muito mais fundo do que na verdade o era. E mesmo que ele estivesse ao meu alcance, as lágrimas me sufocavam e tiravam o foco de qualquer ponto de apoio, fosse este meu próprio pé aflito e irrequieto.
Devo a você minha vida. Sem seu carinho e cuidado, eu não teria suportado.
.
E agora mergulhar já não amedronta tanto. Porque conseguimos provar para nós mesmos que se não for possível tocar o fundo, cabe o esforço válido de chegar na lateral.
O esforço de respirar vida.
O desejo de mergulhar mais fundo.
Límpido como a água que escorre pelas janelas molhadas de inverno.
(...)
A luz parecia distante. As pupilas, não acostumadas, reclamavam um pouco mais de vida e cor. Mas tudo adquirira um tom pastoso, sem graça. Tudo - absolutamente tudo - se mostrava menos interessante do que deveria e poderia ser.
Vivi o meu mundo de escuridão.
Meus olhos exigiam um tempo de reclusão. Desacostumaram-se a enxergar a beleza das coisas. O apelo de tudo que me cercava era incessante. O estímulo, invariavelmente, atormentava-me o juízo. Mas eu não cedia. Sim, eu estava perdido em meus próprios receios.
De sonhar.
De, outra vez, viver.
De, quem sabe, até sorrir.
.
E, então, seu brilho, tão escasso aos seus próprios olhos como o meu o era a mim, iluminou o pouco de esperança que ainda vegetava em minhas entranhas.
A esperança de ter com quem caminhar.
A vontade de aproveitar cada feixe de luz do dia.
Diáfana e oblíqua como a essência ébria de um sol de verão.
(...)
Experimentamos a vida!
O calor dos desejos - Todos eles muito insanos.
O ardor das paixões - Todas elas com início, meio e fim.
O queimar dos amores - Todos eles muito urgentes e infinitamente incompreensíveis.
Demo-nos o direito de aproveitar cada gota de fogo que a juventude nos concede. E no auge dos nossos dezenove anos podemos, com classe e muito conscientes do perigo e prazer disto, dizermo-nos conhecedores de vinhos, conhaques e todas as mais semelhantes.
Provamos as poções, os antídotos, os venenos...
.
E não teria sido diferente. Porque precisávamos sacudir, se não o todo, pelo menos o nosso mundinho. A nossa vidinha, até então um tanto quanto tediosa.
Nossa existência limitada.
Nossa infância obsoleta e encarcerante.
Incinerada nas chamas do, hoje, talvez não tão conhecido, domínio de si.
(...)
- Você está sentindo o cheiro?
- Cheiro de quê?
- Cheiro de Liberdade!
.
E nós a conhecemos. Se não a que nos permite fazer absolutamente tudo que queremos, no mínimo a que nos concede a leveza de ser ou não o que queremos ser.
A leveza de ser quem é.
A coragem de viver intensamente.
Impertérrita como nossos sapatos, já cansados, mas irresolutos.
(...)
Foi então que tomamos consciência do amor.
Conseguimos voar juntos. Por lugares nunca antes visitados. Em caminhos só nossos. Em viagens só nossas. Viagens que mais ninguém se permite fazer além de nós mesmos. Nem por nós, nem conosco. Viagens por sentimentos, por momentos, por ilusões que só cabem em nossas cabeças de crianças-adultas de dezenove anos.
.
E, enfim, fui tomado pela certeza lacônica de que agora a vida faz mais sentido. Porque você existe em meu mundinho de criança perdida. Porque você não é apenas uma amiga (apesar de que isso já quer dizer muita coisa). Você é uma extensão de minha consciência.
A consciência de que vale à pena viver.
A irrefutável certeza de que tenho encontrado tudo em você.
Simples e ubíqua como o sentimento que transcende a natureza efêmera da palavra.
(...)
Um futuro nos aguarda, ansioso. Ainda temos muitos copos (e corpos!), muitos abraços, muitos beijos a experimentar. Como também muitos medos, problemas e perdas.
Sim, é assustador.
Mas já não tenho medo. Se você vai estar comigo, eu sigo. Até mesmo de olhos vendados, caso seja necessário. Porque estou seguro ao seu lado. Envelhecer é inevitável. Mas fazê-lo em sua companhia deixa de ser um suplício e se torna uma dádiva.
.
E logo tudo será mais feliz. Encontraremos sorrisos em todos os cantos. Na terra, em cima da terra e embaixo da terra.
A terra que nos é de direito.
A terra que nos fadará à eternidade.
Mansa e suave como o nosso sonho de primavera.
Rafael Casal / 26 de Julho de 2010
(Parte III de "Confissões pouco trabalhadas")