"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Os sete elementos

(...)

Não lembro exatamente do nosso primeiro contato. Nem como, nem onde e muito menos por qual exato motivo. Mas, certamente, ele fora aprazível, porque desde sempre tive plena certeza de que você estaria comigo. E apesar de, ao tempo, não compreender por completo a dimensão do que me ocorria, convencido estava de que você era diferente de todos aqueles que, contigo, invadiram minha rotina.

Sim! - Um dia especial que se perdeu nos limites de minha memória não-declarativa.

De fato, as datas pouco importam no advento do tempo e sequer consigo marcar o momento específico em que seus olhos repuxados e seu sorriso nipo-brasileiro transformaram meu mundo. Contudo, desde então, tudo que não envolve você muito pouco me interessa.

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E na ausência da lembrança real, limito-me a reinventar, numa íntima fantasia, este belo dia em que saimos de nossos vôos solitários e entregamo-nos ao gracejo de voar em revoada.

Este belo dia.
Este nosso encontro não-marcado.
Leve, como a brisa de um dia morno de outono.

(...)

De início, os dias nos foram generosos. Horas e horas divididas. E mesmo que fosse por uma imposição da vida, sempre fora delicioso desfrutar de sua companhia. Repartimos tudo. Os medos, as angústias, as frustrações, as vitórias e até o último biscoito recheado do pacote.

Dividimos o tempo e o espaço.

Dividimos a piscina.

E, quando mais urgente me foi, você me mostrou que eu poderia segurar em sua mão. E mais digno ainda: que eu poderia nadar sozinho e segurar na borda lisa de ladrilhos, pois esta mesmo escorregadia, daria-me a segurança de que tanto necessitava.

Confesso que estava me afogando. O fundo parecia muito mais fundo do que na verdade o era. E mesmo que ele estivesse ao meu alcance, as lágrimas me sufocavam e tiravam o foco de qualquer ponto de apoio, fosse este meu próprio pé aflito e irrequieto.

Devo a você minha vida. Sem seu carinho e cuidado, eu não teria suportado.

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E agora mergulhar já não amedronta tanto. Porque conseguimos provar para nós mesmos que se não for possível tocar o fundo, cabe o esforço válido de chegar na lateral.

O esforço de respirar vida.
O desejo de mergulhar mais fundo.
Límpido como a água que escorre pelas janelas molhadas de inverno.

(...)

A luz parecia distante. As pupilas, não acostumadas, reclamavam um pouco mais de vida e cor. Mas tudo adquirira um tom pastoso, sem graça. Tudo - absolutamente tudo - se mostrava menos interessante do que deveria e poderia ser.

Vivi o meu mundo de escuridão.

Meus olhos exigiam um tempo de reclusão. Desacostumaram-se a enxergar a beleza das coisas. O apelo de tudo que me cercava era incessante. O estímulo, invariavelmente, atormentava-me o juízo. Mas eu não cedia. Sim, eu estava perdido em meus próprios receios.

De sonhar.

De, outra vez, viver.

De, quem sabe, até sorrir.

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E, então, seu brilho, tão escasso aos seus próprios olhos como o meu o era a mim, iluminou o pouco de esperança que ainda vegetava em minhas entranhas.

A esperança de ter com quem caminhar.
A vontade de aproveitar cada feixe de luz do dia.
Diáfana e oblíqua como a essência ébria de um sol de verão.

(...)

Experimentamos a vida!

O calor dos desejos - Todos eles muito insanos.
O ardor das paixões - Todas elas com início, meio e fim.
O queimar dos amores - Todos eles muito urgentes e infinitamente incompreensíveis.
Tudo como próprio da idade em que nos encontramos.

Demo-nos o direito de aproveitar cada gota de fogo que a juventude nos concede. E no auge dos nossos dezenove anos podemos, com classe e muito conscientes do perigo e prazer disto, dizermo-nos conhecedores de vinhos, conhaques e todas as mais semelhantes.

Provamos as poções, os antídotos, os venenos...

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E não teria sido diferente. Porque precisávamos sacudir, se não o todo, pelo menos o nosso mundinho. A nossa vidinha, até então um tanto quanto tediosa.

Nossa existência limitada.
Nossa infância obsoleta e encarcerante.
Incinerada nas chamas do, hoje, talvez não tão conhecido, domínio de si.

(...)

- Você está sentindo o cheiro?
- Cheiro de quê?
- Cheiro de Liberdade!

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E nós a conhecemos. Se não a que nos permite fazer absolutamente tudo que queremos, no mínimo a que nos concede a leveza de ser ou não o que queremos ser.

A leveza de ser quem é.
A coragem de viver intensamente.
Impertérrita como nossos sapatos, já cansados, mas irresolutos.

(...)

Foi então que tomamos consciência do amor.

Conseguimos voar juntos. Por lugares nunca antes visitados. Em caminhos só nossos. Em viagens só nossas. Viagens que mais ninguém se permite fazer além de nós mesmos. Nem por nós, nem conosco. Viagens por sentimentos, por momentos, por ilusões que só cabem em nossas cabeças de crianças-adultas de dezenove anos.

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E, enfim, fui tomado pela certeza lacônica de que agora a vida faz mais sentido. Porque você existe em meu mundinho de criança perdida. Porque você não é apenas uma amiga (apesar de que isso já quer dizer muita coisa). Você é uma extensão de minha consciência.

A consciência de que vale à pena viver.
A irrefutável certeza de que tenho encontrado tudo em você.
Simples e ubíqua como o sentimento que transcende a natureza efêmera da palavra.

(...)

Um futuro nos aguarda, ansioso. Ainda temos muitos copos (e corpos!), muitos abraços, muitos beijos a experimentar. Como também muitos medos, problemas e perdas.

Sim, é assustador.

Mas já não tenho medo. Se você vai estar comigo, eu sigo. Até mesmo de olhos vendados, caso seja necessário. Porque estou seguro ao seu lado. Envelhecer é inevitável. Mas fazê-lo em sua companhia deixa de ser um suplício e se torna uma dádiva.

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E logo tudo será mais feliz. Encontraremos sorrisos em todos os cantos. Na terra, em cima da terra e embaixo da terra.

A terra que nos é de direito.
A terra que nos fadará à eternidade.
Mansa e suave como o nosso sonho de primavera.



Rafael Casal / 26 de Julho de 2010
(Parte III de "Confissões pouco trabalhadas")



quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sinestesia

Essência de fogo.

Hilário como ainda consigo fechar os olhos e senti-la. Como vivo me parece o aroma de nossos problemas, tão intenso que, mesmo já inquietamente rarefeito, arde em minha consciência. Sim, ele ainda me consome. Não como outrora me enchia de loucura. Não como no momento do amor. Mas, de fato, resta-me o resquício do seu perfume suado. E, apesar de sequer tê-lo negado antes de sua partida, obrigado fui a embeber-me da connvicção cotidiana de que tudo não passara de uma parosmia idiopática inventada por nós mesmos.

Acredite, já não dói tanto. Porque mesmo tendo sido assaltado de forma cruel por sua ausência, o pouco de você que em mim resta mais do que suficiente me é para toda a eternidade. Para o infinito de minha existência sobre-humana. Para o homem que nasceu no dia de nossa despedida, o menino que chorou sangue por não ter nada além para derramar.

Suficiente para toda a eternidade.

(E quão satisfatória é esse certeza do sempre)

Trata-se do você impregnado no eu. Do quanto de alma foi dedicada a mim por ti e que hoje me é propriedade. Como se o seu toque, grafado em chamas na minha pele, tivesse vida própria e eu pudesse percebê-lo, tocá-lo e até, talvez, entendê-lo. Ou pelo menos tentar. Como se todos os meus poros fossem extensão do seu corpo e a minha carne exalasse o seu cheiro.

Que é doce, como o eram seu olhos.
Um doce de bala de caramelo, muitas vezes enjoativo, mas que seduz e me fazia querer-te até a última molécula de açucar. Tão doce quanto poderiam ser, dadas as circunstâncias em que os encontrei: vazios, inquietos e sedentos.

Um doce de brincadeira boba de criança.

E provar desse alcaçuz irritante me era tão prazeroso, que quando enfim me dei conta da separação efetiva, já não conseguia sentir outros cheiros por perto, porque o seu era o mais forte e aprazível. Minhas narinas, já acomodadas, não estavam sensíveis a qualquer um que não fosse você. Meu cérebro simplesmente não registrava.

Não me interessavam os ácidos, amargos, azedos ou salgados. Só me tocava o espírito o seu cheiro doce. A sua essência melíflua. Porque seu cheiro era o meu cheiro, sua pele era a minha pele. Estava em mim. No meu quarto. Na minha cama. Nas minhas roupas. Nas minhas células. Em absolutamente todas as minhas células.

Essência de fogo.

O fogo que me fazia tremer ao contato dos lábios secos, das línguas úmidas, dos braços aflitos, das pernas ansiosas... O calor que me levava ao limite das minhas dimensões terrenas. Não porque, em si, era dos mais intensos, mas porque tornava tudo de planos humanos que um dia eu arquitetara para mim em realidade transfigurada. O fogo de um amor inventado, mas nem por isso de menor valor.

Essência de fogo e fogo de essência que eu já não posso ter.

Porque não me é mais permitido. Porque não faz mais sentido. Porque demos ao outro tudo aquilo que pudemos. O melhor de nossos corpos, de nossas almas, de nossas frustrações. O mais íntimo. O mais obscuro.

E acabou.

Não o amor, porque amores verdadeiros não se extinguem. Eles são resolvidos. Mas o tempo que nos foi reservado pelo destino. O tempo que tivemos para, juntos, respirar a essência da felicidade.

Sim, é nostálgico. Mas não tenho o direito de esquecer. Como fazê-lo, se olho para o homem que me tornei e claramente te vejo? - Não posso! Porque, como é próprio dos grandes amores, hoje sou um ser humano melhor. Você me deu a oportunidade de mudar. E hoje, satisfeito e resignado, com a certeza plena de que valeu muito à pena, reconheço em mim a parte de você que me foi concebida com tanto cuidado.

O pouco do você impregnado no eu.

O seu cheiro de caramelo que me afoga os sentidos quando fecho os meus olhos e te encontro no plano dos meus amores eternos...

Rafael Casal / 08 de Julho de 2010
(Parte II de "Confissões pouco trabalhadas")