- No mais tardar, antes que chegue a tempestade.
Tentei recolher depressa os estilhaços no chão, no afã de impedir que ele se machucasse. Sim, fazê-lo me foi mais do que uma vontade. Sentia um quê de obrigação em todos aqueles movimentos desesperados. Uma obrigação mais para comigo do que com o outro. Sentia que não era correto permitir que se ferisse com os cristais despedaçados do meu copo de vidro fosco. Afinal, era minha responsabilidade cuidar do que me pertencia e, por conseqüência, do que sobrou dele.
Sangrava.
Podia sentir cada gota saltando de meu corpo, esvaindo-se de minhas entranhas. Com dor. Com dispêndio. Com crueldade. Podia sentir a presença do vidro aciculado nas pontas dos dedos ansiosos.
Sangrava. Mas recolher meus destroços, antes de prudente, era extremamente necessário. A princípio, parecia estar sendo altruísta demais para um ser tão egoísta como de veras sou. Tentei fazer com que a dor que me comia aos poucos, a cada movimento das mãos, atingisse-o com o mínimo de desespero possível. Em vias finais, não procurei pensar no impulso, em si, de protegê-lo sem o devido cuidado comigo mesmo. Estava pouco preocupado em como estariam minhas mãos quando terminasse o trabalho de limpeza. O importante é que existia um trabalho que deveria ser feito. E eu o fiz. Fui mais instintivo do que racional [e já não sei mais até que ponto isso pode ser bom ou ruim].
Fiz porque alguém precisava fazer. E, mesmo que por isso fosse intitulado de imoral ou subversivo para com meus próprios valores, prefiro me machucar a ver alguém que amo sofrendo por qualquer motivo que seja.
Destroços. Era só o que tinha restado do que eu segurava com tanto cuidado. Tentei, por um mísero instante, contemplar tudo que me era apresentado aos olhos e realizar a idéia do trauma, já organizando o que poderia fazer para diminuir as seqüelas daquele terrível acidente.
De fato, eu precisava limpar a minha própria sujeira. E procurei fazer isso sem pensar muito na motivação.
Precisava enfrentar as verdades que me estavam sendo espalhadas pelo chão junto com pedaços da vidraria, agora salpicada de carmim. Confrontar o que via com a projeção que fiz do vidro embaçado. Mais que isso, necessitava reconhecer se o equívoco estava no meu ato de contenção de danos ou na permissividade com que tinha tratado o que há pouco estava íntegro em seu conteúdo e forma.
Tentei reconhecer o engodo mal feito. Tentei perceber o que estava faltando.
Confesso que não me ocorria o que para ele parecia tão claro. Não consegui compreender a seqüência, os fatos e as reações. Na verdade, não consegui compreender nada. Estava tudo errado. Estava tudo fora de foco.
Tudo não passou de um equívoco.
Um imagético e ilusório equívoco.
*
Olhei nos seus olhos solicitando ajuda. O mínimo de conforto e tranqüilidade que precisava para, pelo menos, conseguir continuar o que comecei. Mas não encontrei nada além de acusações em demasia torvas que apenas me fizeram tentar arrumar tudo com menos cuidado e mais velocidade. Encontrei apenas uma dor que, no fim das contas, nem era dele. E tampouco minha. Uma dor mais do próprio vidro que nossa. Que existia. Que sobrevivia. Que implodia os retículos cristalinos de nossas fundações.
Ele não me ajudou.
O motivo? – Julgo os mais diversos. Todos e nenhum deles. Motivos que, para ser bem sincero, não me interessam muito. Porque o fato de não ter ajudado quando eu precisei é máximo e absoluto e está acima de todas e quaisquer justificativas que possam ser dadas. O ato perfaz o fato e este, por sua vez, o dever e o direito. Quem se omite tem a mesma culpa de quem praticou o mal.
Sim, eu julgo. Não com toda a carga de presunção e petulância que vejo escorrer das idéias mais cínicas e dantescas do meu deus consciência. Julgo, sem a perspícua finalidade do ato. Mais por conhecer do que por qualificar. Afinal, ele age e sente de acordo com as suas regras e não me cabe atribuí-las juízo de valor qualquer. Não me cabe dizê-las boas ou ruins porque isso está além do limite que, há ínfimos tempos, descobri existir entre o que eu posso e o que eu não posso achar.
*
Recolhi tudo.
Sim, eu o fiz. Não por falta de amor próprio ou porque não me dei o devido respeito. Mas porque estava seguindo as minhas regras e elas me diziam naquele momento que eu deveria preservar o pouco de bem e amor que ainda restava entre aqueles cacos de vidro fosco.
As minhas regras.
E por isso a ninguém cabe o direito de julgar se estou certo ou errado, porque só eu sei o que me custou fazê-lo.
E o que a tempestade tem a ver com tudo isso? – Só consegui perceber depois. Estava tentando me convencer de que as noites chuvosas, das quais eu tanto gostava, continuavam sendo as mesmas. Estava tentando me ludibriar infantilmente com a ladainha repetitiva à respeito das coisas que não mudam. Estava tentando me enganar com minhas próprias mentiras. Lerdo engano [sim, com o r no meio mesmo]. Não consegui perceber que aos poucos, as gotas de água adquiriram um ardor corrosivo em tom de sangue, igual àquele agora incrustado nos cacos tingidos da minha vidraria indefesa. Não consegui aceitar que as feridas evitadas no outro sangravam nele e dele pelos cortes de minhas mãos laceradas, porque já não se tratava mais de dores distintas e sim de um único sentido de responsabilidade.
Se ela vem? – Não tenho certeza. Mas quero estar preparado para enfrentar a crueza insólita desse momento, caso ele chegue de fato. Talvez eu nunca esteja pronto para recebê-lo, mas gosto de me enganar acerca de tal possibilidade.
Esperá-la-ei.
Com tudo limpo. Com tudo arrumado. E com os fragmentos de meu cristal falso se dissolvendo na minha carne machucada e pestilenta.
Porque quero. Porque vale à pena. Porque banhos de tempestade podem ser quentes, calmos e libertadores. Só depende do quanto e de como você o desejava.
Rafael Casal / 19 de novembro de 2011
(Parte V de "Confissões pouco trabalhadas)