"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

sábado, 19 de novembro de 2011

Vidraria Fosca

- No mais tardar, antes que chegue a tempestade.


Tentei recolher depressa os estilhaços no chão, no afã de impedir que ele se machucasse. Sim, fazê-lo me foi mais do que uma vontade. Sentia um quê de obrigação em todos aqueles movimentos desesperados. Uma obrigação mais para comigo do que com o outro. Sentia que não era correto permitir que se ferisse com os cristais despedaçados do meu copo de vidro fosco. Afinal, era minha responsabilidade cuidar do que me pertencia e, por conseqüência, do que sobrou dele.


Sangrava.


Podia sentir cada gota saltando de meu corpo, esvaindo-se de minhas entranhas. Com dor. Com dispêndio. Com crueldade. Podia sentir a presença do vidro aciculado nas pontas dos dedos ansiosos.


Sangrava. Mas recolher meus destroços, antes de prudente, era extremamente necessário. A princípio, parecia estar sendo altruísta demais para um ser tão egoísta como de veras sou. Tentei fazer com que a dor que me comia aos poucos, a cada movimento das mãos, atingisse-o com o mínimo de desespero possível. Em vias finais, não procurei pensar no impulso, em si, de protegê-lo sem o devido cuidado comigo mesmo. Estava pouco preocupado em como estariam minhas mãos quando terminasse o trabalho de limpeza. O importante é que existia um trabalho que deveria ser feito. E eu o fiz. Fui mais instintivo do que racional [e já não sei mais até que ponto isso pode ser bom ou ruim].


Fiz porque alguém precisava fazer. E, mesmo que por isso fosse intitulado de imoral ou subversivo para com meus próprios valores, prefiro me machucar a ver alguém que amo sofrendo por qualquer motivo que seja.


Destroços. Era só o que tinha restado do que eu segurava com tanto cuidado. Tentei, por um mísero instante, contemplar tudo que me era apresentado aos olhos e realizar a idéia do trauma, já organizando o que poderia fazer para diminuir as seqüelas daquele terrível acidente.


De fato, eu precisava limpar a minha própria sujeira. E procurei fazer isso sem pensar muito na motivação.


Precisava enfrentar as verdades que me estavam sendo espalhadas pelo chão junto com pedaços da vidraria, agora salpicada de carmim. Confrontar o que via com a projeção que fiz do vidro embaçado. Mais que isso, necessitava reconhecer se o equívoco estava no meu ato de contenção de danos ou na permissividade com que tinha tratado o que há pouco estava íntegro em seu conteúdo e forma.


Tentei reconhecer o engodo mal feito. Tentei perceber o que estava faltando.


Confesso que não me ocorria o que para ele parecia tão claro. Não consegui compreender a seqüência, os fatos e as reações. Na verdade, não consegui compreender nada. Estava tudo errado. Estava tudo fora de foco.


Tudo não passou de um equívoco.


Um imagético e ilusório equívoco.


*


Olhei nos seus olhos solicitando ajuda. O mínimo de conforto e tranqüilidade que precisava para, pelo menos, conseguir continuar o que comecei. Mas não encontrei nada além de acusações em demasia torvas que apenas me fizeram tentar arrumar tudo com menos cuidado e mais velocidade. Encontrei apenas uma dor que, no fim das contas, nem era dele. E tampouco minha. Uma dor mais do próprio vidro que nossa. Que existia. Que sobrevivia. Que implodia os retículos cristalinos de nossas fundações.


Ele não me ajudou.


O motivo? – Julgo os mais diversos. Todos e nenhum deles. Motivos que, para ser bem sincero, não me interessam muito. Porque o fato de não ter ajudado quando eu precisei é máximo e absoluto e está acima de todas e quaisquer justificativas que possam ser dadas. O ato perfaz o fato e este, por sua vez, o dever e o direito. Quem se omite tem a mesma culpa de quem praticou o mal.


Sim, eu julgo. Não com toda a carga de presunção e petulância que vejo escorrer das idéias mais cínicas e dantescas do meu deus consciência. Julgo, sem a perspícua finalidade do ato. Mais por conhecer do que por qualificar. Afinal, ele age e sente de acordo com as suas regras e não me cabe atribuí-las juízo de valor qualquer. Não me cabe dizê-las boas ou ruins porque isso está além do limite que, há ínfimos tempos, descobri existir entre o que eu posso e o que eu não posso achar.


*


Recolhi tudo.


Sim, eu o fiz. Não por falta de amor próprio ou porque não me dei o devido respeito. Mas porque estava seguindo as minhas regras e elas me diziam naquele momento que eu deveria preservar o pouco de bem e amor que ainda restava entre aqueles cacos de vidro fosco.


As minhas regras.


E por isso a ninguém cabe o direito de julgar se estou certo ou errado, porque só eu sei o que me custou fazê-lo.


E o que a tempestade tem a ver com tudo isso? – Só consegui perceber depois. Estava tentando me convencer de que as noites chuvosas, das quais eu tanto gostava, continuavam sendo as mesmas. Estava tentando me ludibriar infantilmente com a ladainha repetitiva à respeito das coisas que não mudam. Estava tentando me enganar com minhas próprias mentiras. Lerdo engano [sim, com o r no meio mesmo]. Não consegui perceber que aos poucos, as gotas de água adquiriram um ardor corrosivo em tom de sangue, igual àquele agora incrustado nos cacos tingidos da minha vidraria indefesa. Não consegui aceitar que as feridas evitadas no outro sangravam nele e dele pelos cortes de minhas mãos laceradas, porque já não se tratava mais de dores distintas e sim de um único sentido de responsabilidade.


Se ela vem? – Não tenho certeza. Mas quero estar preparado para enfrentar a crueza insólita desse momento, caso ele chegue de fato. Talvez eu nunca esteja pronto para recebê-lo, mas gosto de me enganar acerca de tal possibilidade.


Esperá-la-ei.


Com tudo limpo. Com tudo arrumado. E com os fragmentos de meu cristal falso se dissolvendo na minha carne machucada e pestilenta.


Porque quero. Porque vale à pena. Porque banhos de tempestade podem ser quentes, calmos e libertadores. Só depende do quanto e de como você o desejava.



Rafael Casal / 19 de novembro de 2011

(Parte V de "Confissões pouco trabalhadas)


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ensaio sobre a saudade.

~


E já tenho me perguntado como é possível sentir tanta saudade de você.


Desde que pude provar do seu cheiro pela primeira vez, tenho convivido com o desconforto de não estar perto de você todos os dias, com tempo ocioso para curtir sua presença. Sim, é sempre muito necessário olhar nos seus olhos, tocar você, sentir que você é real. Sempre muito necessário acalentar meu corpo com seu calor e confortar minhas inquietudes com sua presença lenitiva.


E quando não nos é permitido um contato mínimo, parece que o dia não existiu. Parece que ter acordado não fez o mesmo sentido e não teve o mesmo valor. Como se agora você fizesse tudo valer um pouco mais à pena. Como se a sua existência condicionasse minhas ânsias e medos ao rumo irresoluto da felicidade, de cujos sabores não posso desfrutar se você não estiver comigo.


De fato, o contato físico é sempre muito diferente. Por mais que o telefone, o msn ou as sms's diminuam a distância cotidiana entre a gente, nada se compara à sensação lúdica e estóica do seu toque. Além de ser revigorante, é divertido. É pacificador. E tudo porque eu sinto transmissão de amor quando as nossas peles se encontram. Como se a energia que pulsa no ritmo do seu coração se fundisse com a que motiva o meu e, naquele momento, uma só energia ligasse meu espírito a você.


E, certamente, esta ligação tem se tornado mais forte e estável a cada dia. Este nosso laço de compromisso espiritual tem se estabelecido não como uma obrigação, mas como uma dádiva. Porque curtimos a presença do outro. Porque nos deliciamos diariamente com a possibilidade do encontro, do afago, do carinho.


Não falta interesse, nem vontade. E até mesmo a escassez de tempo e das oportunidades, que nos são tomadas pela correria de nossas vidas repletas de responsabilidades e obrigações juvenis, não é empecilho para o momento mais aguardado e feliz do dia: o nosso encontro. O instante em que poderei tocar você e ter a certeza de que você existe mesmo. Os segundos mais delicados. Os minutos mais graciosos. As horas mais encorajadoras.


Os dias mais lindos.


Os dias em que, mesmo estando ao seu lado, não deixo de te querer mais. Não deixo de sentir que ainda é pouco. Não deixo de desejar sua pele, seu calor, seu toque, seu corpo. Porque é mais que amor e desejo. É mais do que um processo volitivo incomum. É necessidade. Não no sentido doentio da palavra, nem no contexto de carga psicótica que a mesma pode conter, mas necessidade entendida como uma depedência sadia. Necessidade como escolha. Necessidade como destino.


Necessidade de você.


Necessidade de estar contigo, de te ver sorrir. Necessidade de sorrir junto com você. Necessidade de dividir horas e horas a fio, falando de tudo e de todos. Falando, brincando, beijando, abraçando, gargalhando... Necessidade de Beto.


Necessidade de Beto, necessidade de vida. Necessidade de ser feliz.


E, sendo assim, como a saudade não me ser companheira diária? - Mais que impossível. Porque, antes mesmo de você sair do meu campo de visão em nossas despedidas rotineiras, eu já sinto que o vazio se estabelece sem pedir licença. O vazio que não me aflige, mas me incomoda. O vazio que não me rouba a paz, mas me deixa levemente inquieto. Um vazio que só se esvai quando posso outra vez tocar seu corpo e, então, sentir nossa felicidade recobrir minha alma de gozo e satisfação.


Quando deixarei de sentir tanta necessidade de você? - Acredito que não tenho essa resposta.


Mas sinto que não conseguirei nunca me acostumar com sua ausência. Sinto que a saudade que hoje me é companhia será cada vez maior e não deixará de me fazer ter vontade de você. Mesmo quando estivermos juntos, velhos e insuportáveis aos estranhos e terceiros e insuportáveis também a nós mesmos. [risos]


Sim, quero ficar com você para sempre.


E poder viver a emoção de ter minha saudade diminuída todas as vezes em que você olhar nos meus olhos, chegando do trabalho ou de um dia fora de casa, e disser que me ama.


Porque agora sei que sentir saudade sem sofrer é um dom de poucos. E com você eu conheci o gosto dessa saudade.


Só com você.


Porque é você. O homem que me escolheu e que eu escolhi para dividir as muitas saudades sutis que teremos e lembranças infantis que construiremos até o ponto final dessa nossa ansiosa história de amor.


Porque é você.



Rafael Casal / em 07 de Abril de 2011.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Gestação


Sob explicações da razão
Permanece o Tempo em gestação.
Um feto desprotegido
Que ansioso por abrigo
Foi quase abortado;
Em efeito do clamor antigo
Estar comigo
Torna-se estranho estado...
Sob tumultuosa reação
Permanece ansioso o embrião
E a lembrança do sentimento
Torna-se a placenta do sofrimento.
Nadando no líquido amniótico
Sem nenhum esteriótipo
Estão os venenos,
As poções,
Os desejos...
Nadar enquanto há tempo
Sorrir enquanto há sofrimento
Matar enquanto há tempo
Ferir enquanto há sentimento.
Afogando no líquido amniótico
Na falta de esteriótipo
Encontra-se a felicidade;
Repleto de agonia
Embebido na anestesia
O tempo pariu a saudade...


Rafael Casal / 20 de Fevereiro de 2006


(Texto antigo, simples, conciso, ainda pouco trabalhado, com uso de pouca técnica, mas que traduz um pouco do meu momento)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Página em branco


Só mesmo o vazio preenche os sulcos desenhados.
Se eu fui, deveras, avisado?
- Ora, é claro! E até mais de uma vez,
Mas a minha surdez,
Esta libertina e iníqua surdez
(Que, volta e meia, em surdina
Confunde-se com minha nudez)
Num acesso de lucidez
Não me deixou perceber o que era claro:
O rangido do atrito agressor
No papel, derramava-se em dor
Não em amor,
Porque, além da noção de favor,
Faltava o necessário preparo,
A exigida coragem para sair do lugar de conforto.
Não, eu não me comparo!
Sei que é difícil abrir mão do amparo,
É mais cômodo não se impor
Porque, de certo, amor não pode ser amor,
Quando existe sobrecarga de dor
Quando, para a caneta, não existe reparo.

[A esta parte não cabem rimas ou frases de efeito. Talvez, quem sabe, os versos não consigam comportar os gritos inaudíveis e os anseios sobre os quais preciso discorrer entre as estrofes do poema. Usar as palavras, já que me falta a voz para bradar as verdades que não consigo articular em vocábulos e fonemas. Talvez os olhares de pesar embebidos em nostalgia não possam ser resumidos em metáforas e eufemismos sadios, porque, em síntese, precisam ser entendidos com clareza e objetividade. Não devem restar dúvidas, ou mesmo divergências mal-resolvidas. Na verdade, não deve restar nada que não possa ser explicado aos próprios desejos e esperanças. Porque é assim que tem que ser. Talvez eu não seja capaz de escrever de forma concisa as reflexões que me tomaram dias escuros e noites em claro. Talvez não seja justo dizer em seis ou sete palavras o produto de horas de sofrimento e choros ruminados e ruminados outra vez. E talvez eu não precise de nada mais de que muitos “talvez” para dizer tudo que eu quero e preciso dizer. Porque talvez, de fato, sobrem linhas no fim da página que não tenham sido danificadas, rasuradas, rabiscadas ou estejam com defeito e ainda me seja reservado o direito de ter mais do que

.]

Sinto à pele as depressões formadas.
Pois o bico seco da arma agressora
(Que, por mal ou bem, já se fora)
Como espada afiada,
Dantesca e envenenada,
Deixou sua marca invasora,
Neutra, alva e desonesta.
Por que à pele?
- Porque é o único sentido que me resta.
Afinal, acabou-se a festa,
Acabou todo o vício de escrever
Sem querer,
Poder,
Ou mesmo sabê-lo fazer.
Acabou a chance de massagear o ego
E, por isso, hoje estou cego.
Não! Eu não nego!
É por não querer enxergar o que não me cabe
Pois antes que acabe
- Antes que eu morra! -
Prefiro assumir tal face impostora
E abster-me deste sádico prazer:
Ver o que eu não posso ver,
Assumir culpas manifestas
E mentiras modestas sobre as quais não tenho dever.
Afinal, deveria eu imaginar o engano?
Como poderia eu saber
Que todo aquele discurso insano
Não passava de um desejo leviano
Que se perdeu no vácuo interior da arma utilizada?
- Pois bem, fugiu de minha perspicácia intuitiva
E, na inocência infantil das tentativas,
A arma desesperada e cativa
Deixou em carne viva
Da página, a alma faminta.
Tudo porque do vácuo só emanava o frio
O silêncio e o vazio,
No vácuo não existia tinta!
De fato, [Antes que eu minta]
No vácuo não existia nada.
Não existia absolutamente nada.
E, ao findar da loucura, no papel alvacento,
Ficou a marca impura do insensato divertimento
- Muda, invisível e sem reconhecimento -
Que, agora, por merecimento,
É página virada.


Rafael Casal / 04 de Janeiro de 2011

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Recado


- Sim, eu não nego.
Pois o que, nesta pobre rima, alego
É um pouco de estimada atenção.
Não a quero como amor cobrado,
Porque do muito que tem me dado
Percebo um quê de fardo
Do qual não penso em culpa assumida;
Quero apenas sua paz benfazeja
Pois – caso, cego, ainda não veja –
És uma parte do que chamo vida,
Uma célula dessa ima ilusão.
Falta a coragem de me olhar nos olhos?
- Então segure na minha mão.
Use o tato!
Porque, de fato,
A existência do outro nos basta.
A palavra,
O som,
A rima.
[Essa desengonçada e escalafobética rima]
Tudo isso já nos anima
Tudo isso entre nós contrasta!
E de forma grotescamente nefasta
Ensina-nos uma bela lição:
Indiferente às partes casualmente homônimas
Toda essa nossa afinidade mínima
Mostra-nos, fusilânima,
Que algumas coisas simplesmente são.
- Confesso a falta de sua voz,
Mas já não reclamo.
Em verdade, é mais simples sentir,
Omitir, sorrir, assistir, abstrair
- Quem sabe, às vezes, até mesmo agredir -
E todos mais que não nos deixam mentir
E todos mais com que, em síntese, exclamo:
Amigo, eu te amo!
E, mesmo sem dizê-lo veloz,
Não tê-lo me seria atroz.
- Sim, eu confesso.
Que, apesar de ao seu dia não ter acesso,
[Sabendo o preço
E por tanto agradeço]
Sua alma me é aberta.
E por sabê-la te ofereço amizade,
Verdade,
Intimidade,
Por termo-nos nas horas mais certas.
Você está comigo.
Amigo.
Com o direito que confere o dito.
Amigo.
Amigo.
De agora até todo infinito.




Rafael Casal / 27 de Outubro de 2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Dia de Sol


E, enfim, você chegou.


.


Realidades transfiguradas invadem meu campo de imaginação quando penso no martírio de angústias que me foi o longo período em que estiveras distante. Sim, eu esperei por você durante muito tempo. Foram dias e dias recluso em minha própria loucura, perdido em verdades e mentiras íntimas; sonhos e realidades que já não distinguiam-se em seus limites tênues. Horas a fio tentando projetar com cuidado o momento exato de nosso encontro. Segundos intermináveis, em que absolutamente nada mais me parecia convidativo, senão a imagem difusa que tinha inventado de nosso futuro perfeito.


Onde estive? - Trata-se de uma boa pergunta. Acredito eu que perdido entre meus amores pseudo-concretos, na busca excrucitante por nós mesmos. Na procura por qualquer indício de sua existência. Na interminável espera de apenas um único sinal de realidade. Um sinal de que a paciência era válida, de que não tardaria a chegar o meu tão prometido amor verdadeiro.


De fato, muitos foram os momentos aterrorizados em que nada me era mais alucinante do que a idéia de desistir e me entregar, de forma definitiva, à consciência ilícita de que eu, simplesmente, não merecia. Entregar-me à certeza venéfica de que o futuro não passava de uma ilusão forjada por mim como mecanismo de fuga, uma maneira de negar minha condição de abandono e mortificação lenta e progressiva. A certeza irresoluta de que a felicidade era uma invenção ridícula.


Ridícula e infantil. Como sempre me pareceu tudo aquilo que não fosse parte efetiva do mundo concreto a que, por hora, estamos tão arraigados. Sim, ridícula. Mas valeria à pena duvidar de tamanha esperança? - De certo, que não.


Imagino que não me era direito duvidar dos verdadeiros sentimentos e de suas implicações práticas. E por isso, todas as vezes em que fui assaltado pela violada vontade do não-viver, eu preferi embeber-me da inquieta dúvida de sua existência. Mantive-me resignado em minhas necessidades. E mesmo que fosse tudo uma grande mentira, que tudo não passasse de uma promessa ilegítima e perniciosa, negá-la era uma realidade da qual escolhi não me apoderar.


Grande mentira? - Que fosse. Não estava em condições de rejeitar sequer uma farsa. E acreditei nela com todas as energias que poderia dispender na situação. Porque sempre fora mais fácil me enganar com verdades pouco questionadas. Sempre fora mais cômodo me convencer de que uma mentira dita e pensada repetida vezes, torna-se uma verdade fatídica. Sempre fora mais ingênuo fingir que acreditava nas minhas próprias mentiras.


Ora, eu apenas sentia. Não só porque queria sentir. Não só porque era próprio e lídimo de minha natureza humana (e entenda-se aqui o verdadeiro sentido da palavra). Mas porque sempre quis mesmo acreditar que tanta dor e tanto problema não seria em vão. Acreditava porque, no fim de todas as certezas, no mais profundo e hermético limite do eu, sobrevive a noção instintiva de que existe um motivo de ser. Existe uma razão intuitiva que diz "Não desista".


[Necessidade máxima de justificar-se a si mesmo e reconhecer a representação valorativa da resignação]


.


Raios de luz invadiram minha janela. Despertei com o calor morno salpicando meu rosto de saudades ainda não sentidas. Pude perceber um leve ardor a corroer-me as loucuras. Os sentimentos nus, sem defesas, sem proteção, reclamavam da pele exposta. Da pele. Do corpo. Do espírito. Reclamavam a ausência de tudo que não tivera e ainda mais do que viriam a ter. Quando abri os olhos e tomei consciência de mim, talvez não de mim, mas de quem fui um dia, coloquei-me a contemplar o outro lado do vidro fosco. Tentei focalizar as formas que se projetavam sobre a minha retina, mas não consegui reconhecer nada muito diferente da escuridão da madrugada gélida. Precisava abrir os olhos da alma. Precisava aprender a receber a luz. Certamente tanto tempo de preparo e espera me roubara a sensibilidade de perceber que tinha chegado o momento que eu aguardei ansioso.


O nosso encontro. Ou melhor, o nosso reencontro. Sim, reencontro. Porque a sensação que tive quando, enfim, tombei com a lúcida certeza de que você tinha chegado, foi irrefutavelmente de que já nos conhecíamos de outros caminhos. Como se estivéssemos todo o tempo nos preparando para este momento tão único em que poderíamos olhar um para o outro, tocar-se mutuamente e sentir que, em realidade, existia uma promessa a ser cumprida. Sentir que todo este tempo de planos e medos não foi perdido. Como se cada segundo que, hoje, dividimos tivesse sido planejado com cuidado já há muito tempo.


Diferente não poderia ser. Porque não se tratava apenas de um encontro de corpos. Não apenas de mais um dia a ser guardado no meu compartimento de memórias secretas. Foi diferente. Foi simplesmente diferente. E, engraçado, já não fomos tomados de assalto por tal diferença, porque, desde o início, desde os planos, antes mesmo do toque efetivo, sabíamos que assim seria. Com você e eu tudo é, foi e sempre será diferente. Explicação? - Ora, muito simples: tratava-se não de um beijo, um abraço, uma dança, mas (e hoje, digo isso com a convicção máxima própria de um poeta livre) do encontro definitivo de almas repartidas.


Ridículo e infantil? - Talvez. Mas, inegavelmente, é real. E, apesar do ainda incipiente convívio, assim como cada instante que compartilhamos, as certezas de que temos um futuro melhor no aguardo de nossa chegada são mais que palpáveis. Um futuro nosso. Só nosso. Só nosso e de mais ninguém. Um único caminho para você e eu. Um único caminho. Um único futuro. Um único destino. E tudo isso porque já não pode ser de outra forma. Porque reconhecemo-nos um no outro. Porque, enfim, estamos conscientes de que somos partes separadas de um único ser. Uma única alma habitando dois corpos.


Impossível - e até mesmo ilógico - não agradecer por todo o bem que você me faz. Por ter transformado minhas madrugadas frias em dias iluminados e cheios de alegria. Por tornar todas as minhas dúvidas e fragilidades em lembranças já sem sentido. E, acima de tudo isso, dos abraços, dos beijos, do carinho e do cuidado, eu devo agradecer pela escolha. Você me escolheu. Você me quis e eu preciso agradecer por você fazer de mim alguém reconhecidamente digno do amor. Por me proporcionar o prazer de sentir a convicção lenitiva de que eu existo.


Gosto de você. Gosto de ficar com você. Do seu sorriso. Do seu cheiro. Do seu beijo. Do seu calor. Gosto de tudo em você. De absolutamente tudo. É isso se deve ao simples fato de que você é a personificação dos meus desejos mais complexos. Você é o tudo e para tudo. O amigo, o amor, o amante... É, de fato, tudo aquilo que me faltava.


O mais perfeito de toda essa conjuntura é saber que valeu à pena a espera. Que todas os segundos sem você antes serão multiplicados e reproduzios em sorrisos sinceros e espontâneos. É tomar como verdade inquestionável a certeza de que tudo que aconteceu até então me preparou para você. Saber que toda dor sentida e todos os erros cometidos (os confessados e os omitidos) me tornaram não o melhor que eu deveria, mas o melhor que eu poderia ser para você. O melhor que eu posso te oferecer. O mais íntimo. O mais sincero. O meu eu, agora também seu.


.


Hoje, a consciência ilícita de que não mereço a felicidade já não me atormenta. Consigo ver a luz entrando pela janela e não me assustar. Posso enxergar o futuro através do vidro fosco. Sim, eu consigo. Porque não me faltavam os olhos para enxergar. Não me faltava a alma preparada para o que estava do outro lado da janela. Faltava você para me mostrar que eu posso enxergar. Faltava você para abrir os olhos da minha alma.


E, enfim, você chegou.

E agora, todos os dias são de céu claro. Todos os dias são limpos e livres de quaisquer jugo. Todos os dias são dias de amor e tranquilidade.


Todos os dias são dias de Sol.




Rafael Casal / 19 de Agosto de 2010

(Parte IV de "Confissões pouco trabalhadas")

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Os sete elementos

(...)

Não lembro exatamente do nosso primeiro contato. Nem como, nem onde e muito menos por qual exato motivo. Mas, certamente, ele fora aprazível, porque desde sempre tive plena certeza de que você estaria comigo. E apesar de, ao tempo, não compreender por completo a dimensão do que me ocorria, convencido estava de que você era diferente de todos aqueles que, contigo, invadiram minha rotina.

Sim! - Um dia especial que se perdeu nos limites de minha memória não-declarativa.

De fato, as datas pouco importam no advento do tempo e sequer consigo marcar o momento específico em que seus olhos repuxados e seu sorriso nipo-brasileiro transformaram meu mundo. Contudo, desde então, tudo que não envolve você muito pouco me interessa.

.

E na ausência da lembrança real, limito-me a reinventar, numa íntima fantasia, este belo dia em que saimos de nossos vôos solitários e entregamo-nos ao gracejo de voar em revoada.

Este belo dia.
Este nosso encontro não-marcado.
Leve, como a brisa de um dia morno de outono.

(...)

De início, os dias nos foram generosos. Horas e horas divididas. E mesmo que fosse por uma imposição da vida, sempre fora delicioso desfrutar de sua companhia. Repartimos tudo. Os medos, as angústias, as frustrações, as vitórias e até o último biscoito recheado do pacote.

Dividimos o tempo e o espaço.

Dividimos a piscina.

E, quando mais urgente me foi, você me mostrou que eu poderia segurar em sua mão. E mais digno ainda: que eu poderia nadar sozinho e segurar na borda lisa de ladrilhos, pois esta mesmo escorregadia, daria-me a segurança de que tanto necessitava.

Confesso que estava me afogando. O fundo parecia muito mais fundo do que na verdade o era. E mesmo que ele estivesse ao meu alcance, as lágrimas me sufocavam e tiravam o foco de qualquer ponto de apoio, fosse este meu próprio pé aflito e irrequieto.

Devo a você minha vida. Sem seu carinho e cuidado, eu não teria suportado.

.

E agora mergulhar já não amedronta tanto. Porque conseguimos provar para nós mesmos que se não for possível tocar o fundo, cabe o esforço válido de chegar na lateral.

O esforço de respirar vida.
O desejo de mergulhar mais fundo.
Límpido como a água que escorre pelas janelas molhadas de inverno.

(...)

A luz parecia distante. As pupilas, não acostumadas, reclamavam um pouco mais de vida e cor. Mas tudo adquirira um tom pastoso, sem graça. Tudo - absolutamente tudo - se mostrava menos interessante do que deveria e poderia ser.

Vivi o meu mundo de escuridão.

Meus olhos exigiam um tempo de reclusão. Desacostumaram-se a enxergar a beleza das coisas. O apelo de tudo que me cercava era incessante. O estímulo, invariavelmente, atormentava-me o juízo. Mas eu não cedia. Sim, eu estava perdido em meus próprios receios.

De sonhar.

De, outra vez, viver.

De, quem sabe, até sorrir.

.

E, então, seu brilho, tão escasso aos seus próprios olhos como o meu o era a mim, iluminou o pouco de esperança que ainda vegetava em minhas entranhas.

A esperança de ter com quem caminhar.
A vontade de aproveitar cada feixe de luz do dia.
Diáfana e oblíqua como a essência ébria de um sol de verão.

(...)

Experimentamos a vida!

O calor dos desejos - Todos eles muito insanos.
O ardor das paixões - Todas elas com início, meio e fim.
O queimar dos amores - Todos eles muito urgentes e infinitamente incompreensíveis.
Tudo como próprio da idade em que nos encontramos.

Demo-nos o direito de aproveitar cada gota de fogo que a juventude nos concede. E no auge dos nossos dezenove anos podemos, com classe e muito conscientes do perigo e prazer disto, dizermo-nos conhecedores de vinhos, conhaques e todas as mais semelhantes.

Provamos as poções, os antídotos, os venenos...

.

E não teria sido diferente. Porque precisávamos sacudir, se não o todo, pelo menos o nosso mundinho. A nossa vidinha, até então um tanto quanto tediosa.

Nossa existência limitada.
Nossa infância obsoleta e encarcerante.
Incinerada nas chamas do, hoje, talvez não tão conhecido, domínio de si.

(...)

- Você está sentindo o cheiro?
- Cheiro de quê?
- Cheiro de Liberdade!

.

E nós a conhecemos. Se não a que nos permite fazer absolutamente tudo que queremos, no mínimo a que nos concede a leveza de ser ou não o que queremos ser.

A leveza de ser quem é.
A coragem de viver intensamente.
Impertérrita como nossos sapatos, já cansados, mas irresolutos.

(...)

Foi então que tomamos consciência do amor.

Conseguimos voar juntos. Por lugares nunca antes visitados. Em caminhos só nossos. Em viagens só nossas. Viagens que mais ninguém se permite fazer além de nós mesmos. Nem por nós, nem conosco. Viagens por sentimentos, por momentos, por ilusões que só cabem em nossas cabeças de crianças-adultas de dezenove anos.

.

E, enfim, fui tomado pela certeza lacônica de que agora a vida faz mais sentido. Porque você existe em meu mundinho de criança perdida. Porque você não é apenas uma amiga (apesar de que isso já quer dizer muita coisa). Você é uma extensão de minha consciência.

A consciência de que vale à pena viver.
A irrefutável certeza de que tenho encontrado tudo em você.
Simples e ubíqua como o sentimento que transcende a natureza efêmera da palavra.

(...)

Um futuro nos aguarda, ansioso. Ainda temos muitos copos (e corpos!), muitos abraços, muitos beijos a experimentar. Como também muitos medos, problemas e perdas.

Sim, é assustador.

Mas já não tenho medo. Se você vai estar comigo, eu sigo. Até mesmo de olhos vendados, caso seja necessário. Porque estou seguro ao seu lado. Envelhecer é inevitável. Mas fazê-lo em sua companhia deixa de ser um suplício e se torna uma dádiva.

.

E logo tudo será mais feliz. Encontraremos sorrisos em todos os cantos. Na terra, em cima da terra e embaixo da terra.

A terra que nos é de direito.
A terra que nos fadará à eternidade.
Mansa e suave como o nosso sonho de primavera.



Rafael Casal / 26 de Julho de 2010
(Parte III de "Confissões pouco trabalhadas")