"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Raízes e Asas

Até poderia ser algo mais. Contudo, resta apenas a satisfação.

A dor lenitiva que me toma a planta dos pés é o sumo da consciência de um que um dia fui alguém. A crua certeza de que caminhei. Que os pés me foram bem úteis quando precisei.

Caminhei.
Por sendas obscuras que me levaram aos meus próprios limites. Às linhas infinitas de meu eu mais puro. E apesar do incômodo nos dedos cansados do sapato apertado eu continuei andando. Sim, o sapato sempre me foi apertado. Por maior que ele fosse, nunca coube em si todos os desejos que me impeliam pelo caminho negro à minha frente. E durante cada passo, percebia cada vez mais forte, que em breve eles iriam explodir. Que em breve eles seriam pedaços irreconhecíveis de desejos já esquecidos.

Mas por qual motivo eu ficaria parado? Se mesmo parado, a dor nas minhas falanges não cessaria?

Muito óbvio que de nada valeria. E se fosse para sentir dor, que fosse seguindo em frente. De certo, que em algum momento, tanta dor me serviria de algo. E me restava sempre a razão instintiva de que algum terrível inimigo me esperava um pouco mais adiante. E preparado eu deveria estar para tal momento.

Por isso caminhei. Ora mais rápido, ora mais lento. Mas nunca parei. Até mesmo quando o sangue já latejava agressivo dentro das meias úmidas e fúngicas. Valeria à pena, sempre tive certeza.

E quando caminhar parecia impossível, os sapatos prestes a explodir me foram de grande valia. Os sonhos que tensionavam os cadarços justos e bem enlaçados me deram a chance de não parar. Foram-me a força de impulsão que não me deixava no repouso. Porque até mesmo quando faltava a motivação, restava-me a grandiosidade da inércia. Os sonhos me deram a chance de não parar.

Eu flutuei.

Deslizei, sorrateiro, pelo abismo que se abria sob meus pés ansiosos e inquietos. É claro que de olhos fechados. Não suportaria, admito, passar ileso por tão triste momento. Mas a única real motivação era a consciência de que parar não me era direito. Nunca me atribui tal direito. Sim, foi questão de escolha. E apesar da já citada dor na planta dos pés, eu não me arrepenndo.

(...)

Caminhei.
E hoje parte do que sou ficou para trás. São restos de mim que deixei nos caminhos percorridos. Não porque quis. Mas porque sempre fica um pouco de nós no trajeto. Não só a borracha queimada pelo atrito com o chão, mas o cheiro, o som e a sombra de anseios que o tempo todo se transfiguraram em caminhos alternativos. Sempre fica um pouco de massa e espírito, porque, quando preocupado em seguir veloz, nada mais fui que a incerteza de um dia ter estado ali.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

Tudo de essência que poderia deixar. Em cada fração de gente e estrada que marcam no tempo e no espaço o que represento para o universo que me cerca e fascina.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

Até poderia ser algo mais. Contudo, se além disso deixasse algo, seria a minha natureza egoísta de que tanto preciso para seguir caminhando.Como faria eu para continuar sem ela? - Não seria possível.

Parar? - Acredite, nunca. Não importa quão astuto e cruel seja o inimigo a me espreitar. E mesmo que tenha deixado partes de mim para trás, a ausência destas hoje me completa e me faz ser melhor do que eu era antes de percorrer tais caminhos. Os sapatos ainda continuam prestes a explodir. E sendo assim, não me caberia estagnar em qualquer ponto. Porque não é inteligente. Porque não é justo. Simplesmente porque eu não tenho direito.

Fui alguém. Caminhei. E o pés não perderam - nem perderão! - a avidez por novas trilhas. A necessidade de pisar, sentir, e desfrutar de tudo que ainda tenho por descobrir. Do todo que ainda preciso deixar para trás.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

A inócua sombra de minha inquieta existência.


Rafael Casal / 31 de Dezembro de 2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

P = d g h


Sim. Breve os tímpanos me serão resquícios.

Já posso sentir o delirante torpor da hipóxia a irritar-me os neurônios. Sinto a ausência ébria do ar a colabar-me os bronquíolos. O corpo já está tomado pela acidez lática de minha procura. O que falar então da pele já hipotérmica? - Nada. Não é necessário.

Ah! Quão satisfatória é a descida.
Se você pudesse me acompanhar neste mergulho espástico, sentiria a avidez com que tremo e impulsiono a cabeça um pouco mais fundo. Perceberia na minha ânsia líquida o medo que me faz querer ganhar o infinito destas profundezas gélidas. O medo que me prende e me conduz ao abismo que me aguarda ansioso.

E eu vou ganhá-lo. Percorrê-lo em movimentos amplos e difusos. Até que aos músculos reste a paresia desejada e aos ossos o descanso merecido. Percorrê-lo sedento, para não perder nada do que me foi reservado.
Para que todo este fim de mar seja meu.
Só meu.
Apenas meu e de mais ninguém.

Vou permitir aos pulmões a sorte liquefeita do afogamento. Encharcar meus alvéolos com esta busca impertérrita. E deixar o corpo pesar. Permitir que a descida seja mais rápida e fugaz. Ceder aos apelos da gravidade.

Mais fundo. Cada vez mais fundo. Porque na superfície sobra oxigênio e, para falar a verdade, já estou cansado de respirar com tanta facilidade. Muito mais fundo. Porque é na escassez que se prova a força. É na hipóxia que se pode viver a realidade imagética dos sentimentos supremos.

E eu os quero.

Sim. Breve estarei em apinéia.
Os sons me serão lembranças.
As razões, meras coincidências.
E a consciência um epitélio cúbico simples dilascerado.


Rafael Casal / 20 de Dezembro de 2009


sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Mar de sangue



Banhar-me neste teu carmim envolvente
Nas baixas frequências de tua aquarela
E quando nela,
Sem cautela,
Impregnar-me, enfim, de sua textura em lama,
Que me chama!
Que me leva ao infinto de sua densidade.
Sim! - É verdade
Que a felicidade
Traspassa este véu de colóide escarlate;
Translada em luz-fogo
Este jogo,
O todo
E as partes;
(Mesmo que o todo seja teu imo universo
As partes, o inverso do inverso,
Ou mesmo que - em surdina - a mate.)
Sim! - É um limite sem par
Mas de que vale não mergulhar?
- Ora, é claro que não nos cabe!
Se este mar, como você sabe,
É o fogo-mar,
Jogo-amar,
A essência primitiva da qual se gabe
Até um pobre e imundo diabo
Que acaba - como eu sempre acabo! -
De seu próprio calor, dando cabo
Neste húmus ignescente.
Vem!
Não se isente!
Submergir neste lodo hoje é bem mais que urgente!
Vem!
Não se acovarde!
Antes que o medo
- Em segredo -
Faça-te acreditar que é mui cedo,
Quando, de certo, seja muito tarde.
Não vale demora!
É chegada a hora
De ir embora,
De, sem medo do quanto eu claudico,
Entregar-se a este limo impudico
Porque na margem, ora, é claro: eu não fico!
Na margem todo tempo é perdido
Todo passo não dado é um fracasso rendido;
Na margem, tudo é aflitiva espera.
- E quem me dera!
Que a dita espera
Fosse uma boca em vermillus quente
Boca em vermillus-batom
Apenas espectro-batom,
(Pouco importa, de fato, o tom)
Batom-vermillus borrado
Repleto de gracejo e pecado;
Mar de fogo concupiscente
Desejo-larva de virilidade imponente
O emblema-cor do mundo elevado.
Na margem não fico!
É fato
Que, como de tudo que me é imediato,
Deste mergulho não abdico
Não me abstenho desta energia lodenta!
Vem!
Tenta!
Desenha-te em frases de amarelo e magenta.
Traceja-me em linhas de combate instintivo
Para que eu tenha sempre comigo
- Seguro do que agora digo
E liberto do implicado perigo -
A consciência de que ainda vivo.
Vem!
Seja Marte-Senhor!
Perde-te em meu corpo revestido de cor
Em curvas inundadas de ardor,
Na pele que se continua em mangue.
Enxerga teus próprios sentidos em mim
E afoga-nos sedentos, por fim,
Neste mangue-carmim,
Vermelho-amor,
Espelho-sangue.


Rafael Casal / 11 de Dezembro de 2009