Até poderia ser algo mais. Contudo, resta apenas a satisfação.
A dor lenitiva que me toma a planta dos pés é o sumo da consciência de um que um dia fui alguém. A crua certeza de que caminhei. Que os pés me foram bem úteis quando precisei.
Caminhei.
Por sendas obscuras que me levaram aos meus próprios limites. Às linhas infinitas de meu eu mais puro. E apesar do incômodo nos dedos cansados do sapato apertado eu continuei andando. Sim, o sapato sempre me foi apertado. Por maior que ele fosse, nunca coube em si todos os desejos que me impeliam pelo caminho negro à minha frente. E durante cada passo, percebia cada vez mais forte, que em breve eles iriam explodir. Que em breve eles seriam pedaços irreconhecíveis de desejos já esquecidos.
Mas por qual motivo eu ficaria parado? Se mesmo parado, a dor nas minhas falanges não cessaria?
Muito óbvio que de nada valeria. E se fosse para sentir dor, que fosse seguindo em frente. De certo, que em algum momento, tanta dor me serviria de algo. E me restava sempre a razão instintiva de que algum terrível inimigo me esperava um pouco mais adiante. E preparado eu deveria estar para tal momento.
Por isso caminhei. Ora mais rápido, ora mais lento. Mas nunca parei. Até mesmo quando o sangue já latejava agressivo dentro das meias úmidas e fúngicas. Valeria à pena, sempre tive certeza.
E quando caminhar parecia impossível, os sapatos prestes a explodir me foram de grande valia. Os sonhos que tensionavam os cadarços justos e bem enlaçados me deram a chance de não parar. Foram-me a força de impulsão que não me deixava no repouso. Porque até mesmo quando faltava a motivação, restava-me a grandiosidade da inércia. Os sonhos me deram a chance de não parar.
Eu flutuei.
Deslizei, sorrateiro, pelo abismo que se abria sob meus pés ansiosos e inquietos. É claro que de olhos fechados. Não suportaria, admito, passar ileso por tão triste momento. Mas a única real motivação era a consciência de que parar não me era direito. Nunca me atribui tal direito. Sim, foi questão de escolha. E apesar da já citada dor na planta dos pés, eu não me arrepenndo.
(...)
Caminhei.
E hoje parte do que sou ficou para trás. São restos de mim que deixei nos caminhos percorridos. Não porque quis. Mas porque sempre fica um pouco de nós no trajeto. Não só a borracha queimada pelo atrito com o chão, mas o cheiro, o som e a sombra de anseios que o tempo todo se transfiguraram em caminhos alternativos. Sempre fica um pouco de massa e espírito, porque, quando preocupado em seguir veloz, nada mais fui que a incerteza de um dia ter estado ali.
O cheiro.
O som.
E a sombra.
Tudo de essência que poderia deixar. Em cada fração de gente e estrada que marcam no tempo e no espaço o que represento para o universo que me cerca e fascina.
O cheiro.
O som.
E a sombra.
Até poderia ser algo mais. Contudo, se além disso deixasse algo, seria a minha natureza egoísta de que tanto preciso para seguir caminhando.Como faria eu para continuar sem ela? - Não seria possível.
Parar? - Acredite, nunca. Não importa quão astuto e cruel seja o inimigo a me espreitar. E mesmo que tenha deixado partes de mim para trás, a ausência destas hoje me completa e me faz ser melhor do que eu era antes de percorrer tais caminhos. Os sapatos ainda continuam prestes a explodir. E sendo assim, não me caberia estagnar em qualquer ponto. Porque não é inteligente. Porque não é justo. Simplesmente porque eu não tenho direito.
Fui alguém. Caminhei. E o pés não perderam - nem perderão! - a avidez por novas trilhas. A necessidade de pisar, sentir, e desfrutar de tudo que ainda tenho por descobrir. Do todo que ainda preciso deixar para trás.
O cheiro.
O som.
E a sombra.
A inócua sombra de minha inquieta existência.
Rafael Casal / 31 de Dezembro de 2009