"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

sábado, 19 de novembro de 2011

Vidraria Fosca

- No mais tardar, antes que chegue a tempestade.


Tentei recolher depressa os estilhaços no chão, no afã de impedir que ele se machucasse. Sim, fazê-lo me foi mais do que uma vontade. Sentia um quê de obrigação em todos aqueles movimentos desesperados. Uma obrigação mais para comigo do que com o outro. Sentia que não era correto permitir que se ferisse com os cristais despedaçados do meu copo de vidro fosco. Afinal, era minha responsabilidade cuidar do que me pertencia e, por conseqüência, do que sobrou dele.


Sangrava.


Podia sentir cada gota saltando de meu corpo, esvaindo-se de minhas entranhas. Com dor. Com dispêndio. Com crueldade. Podia sentir a presença do vidro aciculado nas pontas dos dedos ansiosos.


Sangrava. Mas recolher meus destroços, antes de prudente, era extremamente necessário. A princípio, parecia estar sendo altruísta demais para um ser tão egoísta como de veras sou. Tentei fazer com que a dor que me comia aos poucos, a cada movimento das mãos, atingisse-o com o mínimo de desespero possível. Em vias finais, não procurei pensar no impulso, em si, de protegê-lo sem o devido cuidado comigo mesmo. Estava pouco preocupado em como estariam minhas mãos quando terminasse o trabalho de limpeza. O importante é que existia um trabalho que deveria ser feito. E eu o fiz. Fui mais instintivo do que racional [e já não sei mais até que ponto isso pode ser bom ou ruim].


Fiz porque alguém precisava fazer. E, mesmo que por isso fosse intitulado de imoral ou subversivo para com meus próprios valores, prefiro me machucar a ver alguém que amo sofrendo por qualquer motivo que seja.


Destroços. Era só o que tinha restado do que eu segurava com tanto cuidado. Tentei, por um mísero instante, contemplar tudo que me era apresentado aos olhos e realizar a idéia do trauma, já organizando o que poderia fazer para diminuir as seqüelas daquele terrível acidente.


De fato, eu precisava limpar a minha própria sujeira. E procurei fazer isso sem pensar muito na motivação.


Precisava enfrentar as verdades que me estavam sendo espalhadas pelo chão junto com pedaços da vidraria, agora salpicada de carmim. Confrontar o que via com a projeção que fiz do vidro embaçado. Mais que isso, necessitava reconhecer se o equívoco estava no meu ato de contenção de danos ou na permissividade com que tinha tratado o que há pouco estava íntegro em seu conteúdo e forma.


Tentei reconhecer o engodo mal feito. Tentei perceber o que estava faltando.


Confesso que não me ocorria o que para ele parecia tão claro. Não consegui compreender a seqüência, os fatos e as reações. Na verdade, não consegui compreender nada. Estava tudo errado. Estava tudo fora de foco.


Tudo não passou de um equívoco.


Um imagético e ilusório equívoco.


*


Olhei nos seus olhos solicitando ajuda. O mínimo de conforto e tranqüilidade que precisava para, pelo menos, conseguir continuar o que comecei. Mas não encontrei nada além de acusações em demasia torvas que apenas me fizeram tentar arrumar tudo com menos cuidado e mais velocidade. Encontrei apenas uma dor que, no fim das contas, nem era dele. E tampouco minha. Uma dor mais do próprio vidro que nossa. Que existia. Que sobrevivia. Que implodia os retículos cristalinos de nossas fundações.


Ele não me ajudou.


O motivo? – Julgo os mais diversos. Todos e nenhum deles. Motivos que, para ser bem sincero, não me interessam muito. Porque o fato de não ter ajudado quando eu precisei é máximo e absoluto e está acima de todas e quaisquer justificativas que possam ser dadas. O ato perfaz o fato e este, por sua vez, o dever e o direito. Quem se omite tem a mesma culpa de quem praticou o mal.


Sim, eu julgo. Não com toda a carga de presunção e petulância que vejo escorrer das idéias mais cínicas e dantescas do meu deus consciência. Julgo, sem a perspícua finalidade do ato. Mais por conhecer do que por qualificar. Afinal, ele age e sente de acordo com as suas regras e não me cabe atribuí-las juízo de valor qualquer. Não me cabe dizê-las boas ou ruins porque isso está além do limite que, há ínfimos tempos, descobri existir entre o que eu posso e o que eu não posso achar.


*


Recolhi tudo.


Sim, eu o fiz. Não por falta de amor próprio ou porque não me dei o devido respeito. Mas porque estava seguindo as minhas regras e elas me diziam naquele momento que eu deveria preservar o pouco de bem e amor que ainda restava entre aqueles cacos de vidro fosco.


As minhas regras.


E por isso a ninguém cabe o direito de julgar se estou certo ou errado, porque só eu sei o que me custou fazê-lo.


E o que a tempestade tem a ver com tudo isso? – Só consegui perceber depois. Estava tentando me convencer de que as noites chuvosas, das quais eu tanto gostava, continuavam sendo as mesmas. Estava tentando me ludibriar infantilmente com a ladainha repetitiva à respeito das coisas que não mudam. Estava tentando me enganar com minhas próprias mentiras. Lerdo engano [sim, com o r no meio mesmo]. Não consegui perceber que aos poucos, as gotas de água adquiriram um ardor corrosivo em tom de sangue, igual àquele agora incrustado nos cacos tingidos da minha vidraria indefesa. Não consegui aceitar que as feridas evitadas no outro sangravam nele e dele pelos cortes de minhas mãos laceradas, porque já não se tratava mais de dores distintas e sim de um único sentido de responsabilidade.


Se ela vem? – Não tenho certeza. Mas quero estar preparado para enfrentar a crueza insólita desse momento, caso ele chegue de fato. Talvez eu nunca esteja pronto para recebê-lo, mas gosto de me enganar acerca de tal possibilidade.


Esperá-la-ei.


Com tudo limpo. Com tudo arrumado. E com os fragmentos de meu cristal falso se dissolvendo na minha carne machucada e pestilenta.


Porque quero. Porque vale à pena. Porque banhos de tempestade podem ser quentes, calmos e libertadores. Só depende do quanto e de como você o desejava.



Rafael Casal / 19 de novembro de 2011

(Parte V de "Confissões pouco trabalhadas)


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ensaio sobre a saudade.

~


E já tenho me perguntado como é possível sentir tanta saudade de você.


Desde que pude provar do seu cheiro pela primeira vez, tenho convivido com o desconforto de não estar perto de você todos os dias, com tempo ocioso para curtir sua presença. Sim, é sempre muito necessário olhar nos seus olhos, tocar você, sentir que você é real. Sempre muito necessário acalentar meu corpo com seu calor e confortar minhas inquietudes com sua presença lenitiva.


E quando não nos é permitido um contato mínimo, parece que o dia não existiu. Parece que ter acordado não fez o mesmo sentido e não teve o mesmo valor. Como se agora você fizesse tudo valer um pouco mais à pena. Como se a sua existência condicionasse minhas ânsias e medos ao rumo irresoluto da felicidade, de cujos sabores não posso desfrutar se você não estiver comigo.


De fato, o contato físico é sempre muito diferente. Por mais que o telefone, o msn ou as sms's diminuam a distância cotidiana entre a gente, nada se compara à sensação lúdica e estóica do seu toque. Além de ser revigorante, é divertido. É pacificador. E tudo porque eu sinto transmissão de amor quando as nossas peles se encontram. Como se a energia que pulsa no ritmo do seu coração se fundisse com a que motiva o meu e, naquele momento, uma só energia ligasse meu espírito a você.


E, certamente, esta ligação tem se tornado mais forte e estável a cada dia. Este nosso laço de compromisso espiritual tem se estabelecido não como uma obrigação, mas como uma dádiva. Porque curtimos a presença do outro. Porque nos deliciamos diariamente com a possibilidade do encontro, do afago, do carinho.


Não falta interesse, nem vontade. E até mesmo a escassez de tempo e das oportunidades, que nos são tomadas pela correria de nossas vidas repletas de responsabilidades e obrigações juvenis, não é empecilho para o momento mais aguardado e feliz do dia: o nosso encontro. O instante em que poderei tocar você e ter a certeza de que você existe mesmo. Os segundos mais delicados. Os minutos mais graciosos. As horas mais encorajadoras.


Os dias mais lindos.


Os dias em que, mesmo estando ao seu lado, não deixo de te querer mais. Não deixo de sentir que ainda é pouco. Não deixo de desejar sua pele, seu calor, seu toque, seu corpo. Porque é mais que amor e desejo. É mais do que um processo volitivo incomum. É necessidade. Não no sentido doentio da palavra, nem no contexto de carga psicótica que a mesma pode conter, mas necessidade entendida como uma depedência sadia. Necessidade como escolha. Necessidade como destino.


Necessidade de você.


Necessidade de estar contigo, de te ver sorrir. Necessidade de sorrir junto com você. Necessidade de dividir horas e horas a fio, falando de tudo e de todos. Falando, brincando, beijando, abraçando, gargalhando... Necessidade de Beto.


Necessidade de Beto, necessidade de vida. Necessidade de ser feliz.


E, sendo assim, como a saudade não me ser companheira diária? - Mais que impossível. Porque, antes mesmo de você sair do meu campo de visão em nossas despedidas rotineiras, eu já sinto que o vazio se estabelece sem pedir licença. O vazio que não me aflige, mas me incomoda. O vazio que não me rouba a paz, mas me deixa levemente inquieto. Um vazio que só se esvai quando posso outra vez tocar seu corpo e, então, sentir nossa felicidade recobrir minha alma de gozo e satisfação.


Quando deixarei de sentir tanta necessidade de você? - Acredito que não tenho essa resposta.


Mas sinto que não conseguirei nunca me acostumar com sua ausência. Sinto que a saudade que hoje me é companhia será cada vez maior e não deixará de me fazer ter vontade de você. Mesmo quando estivermos juntos, velhos e insuportáveis aos estranhos e terceiros e insuportáveis também a nós mesmos. [risos]


Sim, quero ficar com você para sempre.


E poder viver a emoção de ter minha saudade diminuída todas as vezes em que você olhar nos meus olhos, chegando do trabalho ou de um dia fora de casa, e disser que me ama.


Porque agora sei que sentir saudade sem sofrer é um dom de poucos. E com você eu conheci o gosto dessa saudade.


Só com você.


Porque é você. O homem que me escolheu e que eu escolhi para dividir as muitas saudades sutis que teremos e lembranças infantis que construiremos até o ponto final dessa nossa ansiosa história de amor.


Porque é você.



Rafael Casal / em 07 de Abril de 2011.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Gestação


Sob explicações da razão
Permanece o Tempo em gestação.
Um feto desprotegido
Que ansioso por abrigo
Foi quase abortado;
Em efeito do clamor antigo
Estar comigo
Torna-se estranho estado...
Sob tumultuosa reação
Permanece ansioso o embrião
E a lembrança do sentimento
Torna-se a placenta do sofrimento.
Nadando no líquido amniótico
Sem nenhum esteriótipo
Estão os venenos,
As poções,
Os desejos...
Nadar enquanto há tempo
Sorrir enquanto há sofrimento
Matar enquanto há tempo
Ferir enquanto há sentimento.
Afogando no líquido amniótico
Na falta de esteriótipo
Encontra-se a felicidade;
Repleto de agonia
Embebido na anestesia
O tempo pariu a saudade...


Rafael Casal / 20 de Fevereiro de 2006


(Texto antigo, simples, conciso, ainda pouco trabalhado, com uso de pouca técnica, mas que traduz um pouco do meu momento)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Página em branco


Só mesmo o vazio preenche os sulcos desenhados.
Se eu fui, deveras, avisado?
- Ora, é claro! E até mais de uma vez,
Mas a minha surdez,
Esta libertina e iníqua surdez
(Que, volta e meia, em surdina
Confunde-se com minha nudez)
Num acesso de lucidez
Não me deixou perceber o que era claro:
O rangido do atrito agressor
No papel, derramava-se em dor
Não em amor,
Porque, além da noção de favor,
Faltava o necessário preparo,
A exigida coragem para sair do lugar de conforto.
Não, eu não me comparo!
Sei que é difícil abrir mão do amparo,
É mais cômodo não se impor
Porque, de certo, amor não pode ser amor,
Quando existe sobrecarga de dor
Quando, para a caneta, não existe reparo.

[A esta parte não cabem rimas ou frases de efeito. Talvez, quem sabe, os versos não consigam comportar os gritos inaudíveis e os anseios sobre os quais preciso discorrer entre as estrofes do poema. Usar as palavras, já que me falta a voz para bradar as verdades que não consigo articular em vocábulos e fonemas. Talvez os olhares de pesar embebidos em nostalgia não possam ser resumidos em metáforas e eufemismos sadios, porque, em síntese, precisam ser entendidos com clareza e objetividade. Não devem restar dúvidas, ou mesmo divergências mal-resolvidas. Na verdade, não deve restar nada que não possa ser explicado aos próprios desejos e esperanças. Porque é assim que tem que ser. Talvez eu não seja capaz de escrever de forma concisa as reflexões que me tomaram dias escuros e noites em claro. Talvez não seja justo dizer em seis ou sete palavras o produto de horas de sofrimento e choros ruminados e ruminados outra vez. E talvez eu não precise de nada mais de que muitos “talvez” para dizer tudo que eu quero e preciso dizer. Porque talvez, de fato, sobrem linhas no fim da página que não tenham sido danificadas, rasuradas, rabiscadas ou estejam com defeito e ainda me seja reservado o direito de ter mais do que

.]

Sinto à pele as depressões formadas.
Pois o bico seco da arma agressora
(Que, por mal ou bem, já se fora)
Como espada afiada,
Dantesca e envenenada,
Deixou sua marca invasora,
Neutra, alva e desonesta.
Por que à pele?
- Porque é o único sentido que me resta.
Afinal, acabou-se a festa,
Acabou todo o vício de escrever
Sem querer,
Poder,
Ou mesmo sabê-lo fazer.
Acabou a chance de massagear o ego
E, por isso, hoje estou cego.
Não! Eu não nego!
É por não querer enxergar o que não me cabe
Pois antes que acabe
- Antes que eu morra! -
Prefiro assumir tal face impostora
E abster-me deste sádico prazer:
Ver o que eu não posso ver,
Assumir culpas manifestas
E mentiras modestas sobre as quais não tenho dever.
Afinal, deveria eu imaginar o engano?
Como poderia eu saber
Que todo aquele discurso insano
Não passava de um desejo leviano
Que se perdeu no vácuo interior da arma utilizada?
- Pois bem, fugiu de minha perspicácia intuitiva
E, na inocência infantil das tentativas,
A arma desesperada e cativa
Deixou em carne viva
Da página, a alma faminta.
Tudo porque do vácuo só emanava o frio
O silêncio e o vazio,
No vácuo não existia tinta!
De fato, [Antes que eu minta]
No vácuo não existia nada.
Não existia absolutamente nada.
E, ao findar da loucura, no papel alvacento,
Ficou a marca impura do insensato divertimento
- Muda, invisível e sem reconhecimento -
Que, agora, por merecimento,
É página virada.


Rafael Casal / 04 de Janeiro de 2011