"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Raízes e Asas

Até poderia ser algo mais. Contudo, resta apenas a satisfação.

A dor lenitiva que me toma a planta dos pés é o sumo da consciência de um que um dia fui alguém. A crua certeza de que caminhei. Que os pés me foram bem úteis quando precisei.

Caminhei.
Por sendas obscuras que me levaram aos meus próprios limites. Às linhas infinitas de meu eu mais puro. E apesar do incômodo nos dedos cansados do sapato apertado eu continuei andando. Sim, o sapato sempre me foi apertado. Por maior que ele fosse, nunca coube em si todos os desejos que me impeliam pelo caminho negro à minha frente. E durante cada passo, percebia cada vez mais forte, que em breve eles iriam explodir. Que em breve eles seriam pedaços irreconhecíveis de desejos já esquecidos.

Mas por qual motivo eu ficaria parado? Se mesmo parado, a dor nas minhas falanges não cessaria?

Muito óbvio que de nada valeria. E se fosse para sentir dor, que fosse seguindo em frente. De certo, que em algum momento, tanta dor me serviria de algo. E me restava sempre a razão instintiva de que algum terrível inimigo me esperava um pouco mais adiante. E preparado eu deveria estar para tal momento.

Por isso caminhei. Ora mais rápido, ora mais lento. Mas nunca parei. Até mesmo quando o sangue já latejava agressivo dentro das meias úmidas e fúngicas. Valeria à pena, sempre tive certeza.

E quando caminhar parecia impossível, os sapatos prestes a explodir me foram de grande valia. Os sonhos que tensionavam os cadarços justos e bem enlaçados me deram a chance de não parar. Foram-me a força de impulsão que não me deixava no repouso. Porque até mesmo quando faltava a motivação, restava-me a grandiosidade da inércia. Os sonhos me deram a chance de não parar.

Eu flutuei.

Deslizei, sorrateiro, pelo abismo que se abria sob meus pés ansiosos e inquietos. É claro que de olhos fechados. Não suportaria, admito, passar ileso por tão triste momento. Mas a única real motivação era a consciência de que parar não me era direito. Nunca me atribui tal direito. Sim, foi questão de escolha. E apesar da já citada dor na planta dos pés, eu não me arrepenndo.

(...)

Caminhei.
E hoje parte do que sou ficou para trás. São restos de mim que deixei nos caminhos percorridos. Não porque quis. Mas porque sempre fica um pouco de nós no trajeto. Não só a borracha queimada pelo atrito com o chão, mas o cheiro, o som e a sombra de anseios que o tempo todo se transfiguraram em caminhos alternativos. Sempre fica um pouco de massa e espírito, porque, quando preocupado em seguir veloz, nada mais fui que a incerteza de um dia ter estado ali.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

Tudo de essência que poderia deixar. Em cada fração de gente e estrada que marcam no tempo e no espaço o que represento para o universo que me cerca e fascina.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

Até poderia ser algo mais. Contudo, se além disso deixasse algo, seria a minha natureza egoísta de que tanto preciso para seguir caminhando.Como faria eu para continuar sem ela? - Não seria possível.

Parar? - Acredite, nunca. Não importa quão astuto e cruel seja o inimigo a me espreitar. E mesmo que tenha deixado partes de mim para trás, a ausência destas hoje me completa e me faz ser melhor do que eu era antes de percorrer tais caminhos. Os sapatos ainda continuam prestes a explodir. E sendo assim, não me caberia estagnar em qualquer ponto. Porque não é inteligente. Porque não é justo. Simplesmente porque eu não tenho direito.

Fui alguém. Caminhei. E o pés não perderam - nem perderão! - a avidez por novas trilhas. A necessidade de pisar, sentir, e desfrutar de tudo que ainda tenho por descobrir. Do todo que ainda preciso deixar para trás.

O cheiro.
O som.
E a sombra.

A inócua sombra de minha inquieta existência.


Rafael Casal / 31 de Dezembro de 2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

P = d g h


Sim. Breve os tímpanos me serão resquícios.

Já posso sentir o delirante torpor da hipóxia a irritar-me os neurônios. Sinto a ausência ébria do ar a colabar-me os bronquíolos. O corpo já está tomado pela acidez lática de minha procura. O que falar então da pele já hipotérmica? - Nada. Não é necessário.

Ah! Quão satisfatória é a descida.
Se você pudesse me acompanhar neste mergulho espástico, sentiria a avidez com que tremo e impulsiono a cabeça um pouco mais fundo. Perceberia na minha ânsia líquida o medo que me faz querer ganhar o infinito destas profundezas gélidas. O medo que me prende e me conduz ao abismo que me aguarda ansioso.

E eu vou ganhá-lo. Percorrê-lo em movimentos amplos e difusos. Até que aos músculos reste a paresia desejada e aos ossos o descanso merecido. Percorrê-lo sedento, para não perder nada do que me foi reservado.
Para que todo este fim de mar seja meu.
Só meu.
Apenas meu e de mais ninguém.

Vou permitir aos pulmões a sorte liquefeita do afogamento. Encharcar meus alvéolos com esta busca impertérrita. E deixar o corpo pesar. Permitir que a descida seja mais rápida e fugaz. Ceder aos apelos da gravidade.

Mais fundo. Cada vez mais fundo. Porque na superfície sobra oxigênio e, para falar a verdade, já estou cansado de respirar com tanta facilidade. Muito mais fundo. Porque é na escassez que se prova a força. É na hipóxia que se pode viver a realidade imagética dos sentimentos supremos.

E eu os quero.

Sim. Breve estarei em apinéia.
Os sons me serão lembranças.
As razões, meras coincidências.
E a consciência um epitélio cúbico simples dilascerado.


Rafael Casal / 20 de Dezembro de 2009


sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Mar de sangue



Banhar-me neste teu carmim envolvente
Nas baixas frequências de tua aquarela
E quando nela,
Sem cautela,
Impregnar-me, enfim, de sua textura em lama,
Que me chama!
Que me leva ao infinto de sua densidade.
Sim! - É verdade
Que a felicidade
Traspassa este véu de colóide escarlate;
Translada em luz-fogo
Este jogo,
O todo
E as partes;
(Mesmo que o todo seja teu imo universo
As partes, o inverso do inverso,
Ou mesmo que - em surdina - a mate.)
Sim! - É um limite sem par
Mas de que vale não mergulhar?
- Ora, é claro que não nos cabe!
Se este mar, como você sabe,
É o fogo-mar,
Jogo-amar,
A essência primitiva da qual se gabe
Até um pobre e imundo diabo
Que acaba - como eu sempre acabo! -
De seu próprio calor, dando cabo
Neste húmus ignescente.
Vem!
Não se isente!
Submergir neste lodo hoje é bem mais que urgente!
Vem!
Não se acovarde!
Antes que o medo
- Em segredo -
Faça-te acreditar que é mui cedo,
Quando, de certo, seja muito tarde.
Não vale demora!
É chegada a hora
De ir embora,
De, sem medo do quanto eu claudico,
Entregar-se a este limo impudico
Porque na margem, ora, é claro: eu não fico!
Na margem todo tempo é perdido
Todo passo não dado é um fracasso rendido;
Na margem, tudo é aflitiva espera.
- E quem me dera!
Que a dita espera
Fosse uma boca em vermillus quente
Boca em vermillus-batom
Apenas espectro-batom,
(Pouco importa, de fato, o tom)
Batom-vermillus borrado
Repleto de gracejo e pecado;
Mar de fogo concupiscente
Desejo-larva de virilidade imponente
O emblema-cor do mundo elevado.
Na margem não fico!
É fato
Que, como de tudo que me é imediato,
Deste mergulho não abdico
Não me abstenho desta energia lodenta!
Vem!
Tenta!
Desenha-te em frases de amarelo e magenta.
Traceja-me em linhas de combate instintivo
Para que eu tenha sempre comigo
- Seguro do que agora digo
E liberto do implicado perigo -
A consciência de que ainda vivo.
Vem!
Seja Marte-Senhor!
Perde-te em meu corpo revestido de cor
Em curvas inundadas de ardor,
Na pele que se continua em mangue.
Enxerga teus próprios sentidos em mim
E afoga-nos sedentos, por fim,
Neste mangue-carmim,
Vermelho-amor,
Espelho-sangue.


Rafael Casal / 11 de Dezembro de 2009


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

(________)



- Porque não cabe mais o silêncio.
Já não cabe mais a espera
Sorrir? - quem me dera.
Sorrir foge ao senso de nosso comisso.
Ora, o que posso eu querer além disso?
Um amor de infante prazer,
Viver e (um pouco) a cada dia morrer,
Ou mesmo ilícito compromisso?
Muito bem, que não posso
Se hoje ao ilógico sentimento nosso
Só resta o gosto da ausência mórbida,
A insensatez das saudades rábidas
E o confuso desejo de cuidado.
Resta o calor do beijo remisso
A dor do cuidado omisso
E o cheiro do perfume suado.
Sorrir? - quem me dera
Mas foge às razões de nossa busca esmera
Agraciar-se da própria miséria encrustada;
Foge à essência das respostas sinceras
Mascarar delírios de lacerada quimera
Esvair-se no todo,
No tudo
E no nada.
Esvair-se no ufanismo do esperado momento
Na natureza afásica do sentimento;
Perder a destreza,
A beleza
E a leveza
Da palavra falada.
- Porque já não penso em resposta pronta.
Não me valho
Como ser falho
Do tempo e da inspiração;
Se tal jugo me amedronta?
(Que afronta!)
No fim das contas,
Volúveis em demasia me são.
Sim! - É o fundo do poço!
E agora
No correr da hora
Por este moço
Imerso até o pescoço,
- Perdido em meu próprio alvoroço -
Estou neste nosso problema.
Vazio,
Sem nada,
Sem título
como esse poema.
Como este esquálido e inébrio poema.

Rafael Casal / 30 de Novembro de 2009



sábado, 14 de novembro de 2009

R = {x | x ≠ x}

Desde o início avisei para não tentar adivinhar nem prever meus interesses. Eles são múltiplos. Divisores. Únicos. Vazios.

Não tente entender a lógica das minhas proposições. Elas não podem ser classificadas como verdadeiras ou falsas. Sequer são sentenças. São interesses não consultáveis em tabelas-verdade. Não respeitam relações de equivalência ou mesmo de implicação. São, em suma, declarações sinceras de negação.Conectivos? Não me são de grande valia. A conjunção me é pragmática. A disjunção, evasiva. Confesso, entretanto, a minha simpatia por condicionais. Elas me dão possibilidades. Verdades falsas e Falsidades verdadeiras. Tê-las me é conveniente. Satisfazem as minhas necessidades. Preenchem meu conjunto solução.

Não se permita acreditar nos elementos próprios de minhas vontades. Muito obviamente, são interesses de pertinências mutáveis. Não pensastes mesmo que pudesse ser diferente, creio eu. Mas por via de suposições, deixei claro que não me restrinjo a um conjunto unitário. Não sigo descrições nem leis. Nada de citações ou propriedades. Apenas variações acíclicas entre o −∞ e o +∞.

Não procure respostas em igualdades ou inclusões. O todo não reflete as partes. E as partes juntas, são maiores que o todo. Cruzar informações nunca é de bom resultado. Meu sistema operacional dispensa ineterseções. Vontade e ação? - quase sempre, são conjuntos disjuntos.

Renego os complementares e atraído me sinto pelas diferenças.

Nada a falar sobre as uniões.

Não tente imaginar meus interesses mais íntimos. Eles são Naturais. Neles me perco diariamente. Redesenho-me de forma associativa, seja somando ou multiplicando, e me mantenho reservado em comutativas de adição e produto. Tudo para fugir do elemento neutro (seja ele o nada ou a unidade). São próprios de minha natureza humana. São sentidos de necessidade.

Não tente dimensionar meus interesses mais crus. Eles são Inteiros. Fracioná-los? - Não me faça rir. Mas não são inteiros apenas por sua completude irredutível. Guardam em si a natureza oposta e simétrica dos meus sonhos. E neles eu me reinvento sempre que necessário. Sempre que me vejo desporvido de quocientes e abarrotado de dividendos.

Contemplo, de certo, invariáveis interesses Racionais. Mas sobre eles não tenho muito a falar. São os pontos em que me perco e me traio. Porque eles prescrevem meus passos. Quanto a tais intenções, não tenho qualquer recomendação. Apenas a de que não perca seu tempo ou juízo com elas. Não vale à pena, ora pois. São Racionais. Precisa dizer algo mais?

Apenas Racionais.

(...)

Não se prenda à loucura de minhas ânsias. Elas são Irracionais. Não te cabe entendê-las. Elas se estruturam em razões paralelas que não nos contém e em planos inversos que não alcançamos. Segue uma lógica sem períodos e proposições incoerentes. Produtos de potências incapacitantes e racionalizações imprudentes. Delas tome apenas a insanidade que me é desejada no momento do amor.

Não se engane com a blandície dos meus interesses mais histéricos. Eles são Reais. E não duvide disso. Eles me mantêm vivo. Por mais loucos que pareçam ser. São tão naturais que podem ser racionais. E tão inteiros que podem ser irracionais. Logo assim, sujeito às facetas volúveis da natureza motivadora, eu me vejo sempre perdido nas linhas tortuosas de meu próprio afã e entregue aos delírios insípidos de minhas ausências.

Sabendo que todas são, de igual forma, Reais.

E não tenha medo, por fim, dos meus desejos mais insanos. Sim! Eles são Complexos. E assim o são por sua própria natureza compensatória. Porque não me cabe que não o sejam. Porque, invariavelmente, existem para dilascerar a tolice e a brandura das inapetências. Não os compreendo muito. Mas muito também é o sofrimento encrustado nos extremos de seu vazio. Não tê-los? - Sequer posso imaginar.

Desde o início avisei para não tentar adivinhar nem prever meus interesses. Não existem regras ou quaisquer parâmetros. Apenas possibilidades. Não se perca em restrições. Elas não funcionam. As mais imediatas, são por definição, obsoletas. Nada de restrições, por favor. Acredita mesmo que minhas vontades são tão limitadas?

Não se perca em pontos específicos, porque cada escolha é um intervalo e infinitas são as razões ilógicas que as tornam válida. E por tal certeza é que permaneço tranquilo. Por tal sentença, permito-me o descanso.

Porque tenho a paz e a leveza da variância. A mutabilidade que faz da sinceridade e da intuição meus íntimos subconjuntos

E da Liberdade o meu conjunto Universo.

Rafael Casal / 14 de Novembro de 2009

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O monstro do estômago



Outra vez? Ora, pois que ele está acordando. Mas tinha que ser de tão umbrosa vontade?

- Irrequieta pergunta a se fazer -

Sim, ele está acordando.
Já posso ouvir os rugidos do seu despertar. Já posso sentir o seu movimento e suas garras a arranhar-me as entranhas. De que me valeria agora entoar qualquer canção de ninar? - De nada, muito obviamente.
Foi-se o sono e a paz. Foi-se a tranquilidade do nada. A leveza da ausência.
Ele está acordando.
Fato.
Ponto.

(E agora preparar-me-ei para tal momento)

Ele está acordando.
Não por quem, outrora, despertara. Não por quem, há tempos, rasgara-me o juízo e corroera-me a sanidade. Mas é a mesma ânsia de vida. De liberdade. A mesma vontade louca de explodir sua prisão ácida e ganhar o vácuo das linhas tênues do universo próprio de mim. A ânsia de sufocar-se em seus instintos mais grotescos e planar por entre os símbolos ilógicos de suas íntimas fugas.

(A mesma necessidade de si mesmo).

O que tinha eu a fazer face a tão invasivo levantar? - Apenas o que de certo continha a minha capacidade incipiente: Observei os fatos. Filtrei as certezas. (Desprezei as absolutas e retive as infundadas). E a tal convicção entreguei-me: Ele está acordando. Mas necessito fazer um breve esclarescimento acerca: Trata-se de desejos da mesma natureza e de intensidades díspares. A mesma ânsia em graus distintos de insanidade. - O rodízio de posições permanece constante. Muda-se o objeto e a capacidade deste de causar respostas espásticas, mas persiste a essência da razão motivadora.

Ele está acordando.
Posso sentir seu bafo quente e fétido a irritar-me a mucosa. Cheio de seus costumes histéricos e intempestividade requerida. Ele se move. Remexe-se sobre suas próprias dúvidas e inquietudes. Ele se retorce sobre si mesmo, agônico a cada palavra. Contrai-se a cada simples lembrança, como um corpo às vésperas de um ataque tetânico. Basta a voz. A imagem. Ou o toque. E lá está ele, a inchar-se de sede e fome de vazio.

A voz.
A imagem.
Ou o toque.

E lá está ele a avisar-me que muito em breve serei outra vez abrigo de um universo que não cabe em mim. A avisar-me que ele está quase em vigília e que a insônia (outra vez) é o que me resta.

A voz.
A imagem.
Ou o toque.

E lá está ele a avisar-me que muito em breve serei apenas ácido e restos de mucosa sangrando.
Ácido e restos de mucosa sangrando.


Rafael Casal / 02 de Novembro de 2009

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Encontro



Luz. Brilho. Breu.
Som.
Corpos. Mentes. Gente.
Homens. Mulheres. Mulheres-homens. Homens-mulheres.
XX. XY. XXy. XYx. XXY.
Humanos. Quase-Humanos.
Amigos. Amantes. Acompanhantes.
Som.
Som.
Palavras. Notas. Melodia. Harmonia.
Som.
Pés. Pernas. Mãos. Braços. Abraços.
Dança.
Mudança.

(...)

Calor.
Rubor.
Dinheiro. Garrafas. Copos. Gelo.
Gole.
Gole.
Saliva. Gosto.
Cheiros.
Desejos.
Pés. Pernas. Mãos. Braços. Abraços.
Dança.
Intemperança.

(...)

Pessoa.
Cachos.
Sorriso.
Olhos.
Olhos. Sorriso. Olhos. Sorriso.
Sorriso.
Passos.
- Taquicardia -
Ombro. Pele.
Mãos. Braços. Abraços.
Hesitação.
Sorriso.
Dança.
Insegurança.
Sorriso.
Face. Boca. Lábios. Saliva.
Beijo.

(...)

Segundos. Minutos. Horas.
Noite.
Dia.
Sol.
- Casa?
- Casa.
Saída.
Luz.
Vento. Mar. Sal.
Rua.
Caminhada.
Riso.
Música.
Voz.
Ouvido.
Riso.
Face. Boca. Lábios.
Beijo.

(...)

Portão.
Elevador.
Chave. Porta. Silêncio.
Sapatos.
Roupas.
Pés.
Arrepio.
Água. Espuma. Toalha.
Banho.
Toque.
Carinho.
Pele. Pêlos. Poros.
Corpo.
Água.
Língua.
Desejo.

(...)

Riso.
Pernas. Braços. Abraços.
Lençol. Travesseiro.
Cama.
Desejo.
Mãos.
Dedos.
Línguas.
Beijos.
Sentimento.
Movimento.
Pele. Suor. Espasmos.
Espasmos.
Orgasmos.
Sono.
Sonho.

(...)

Olhos.
Bocas.
Risos.
Palavras.
Histórias.
Vontades.
Sono.
Mãos. Braços. Abraços.
Sono.

(...)

Tempo.
Momento.
Beijo.
Pés. Roupas. Sapatos.
Porta.
Elevador.
Olhos. Mãos.
Portão.
Sorriso.

(...)

E Saudade.

Rafael Casal / Outubro de 2009




segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Meu menino


Teus olhos doces,
Tua boca ansiosa
É que desejo
Olhos,
Boca
Entre beijos,
Entre lábios e dentes;
Dominar tua mente
E teus pés de menino
Meu menino Bobo
Meu Bobo menino,
Lábios,
Beijos
e
Dentes.
Fugir? - Já não tente
Porque este é o momento
Do invento
Do sentimento
Que nasceu e não morre
Não cessa,
Não míngua!
Quero lábios e dentes
Sua mente
- e claro! -
Sua língua.
Vem comigo! - (Não demora)
Esta é a hora
Este é o momento
Da boca,
Da língua
e

Do sentimento.
Meu menino Bobo
Meu Bobo menino,
Esta é a nossa hora
E em palavras de outrora
Tal vontade assino.


Rafael Casal /
26 de Outubro de 2009



quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Vôo de Balão


Num dia comum, finjo minha atenção
Por que captar tudo?
Bastam-me o lápis e a borracha na mão.
Bastam o olhar e o ar de interesse
Para acreditarem, a qualquer momento
Que estou atento
Que estou quieto;
Que aguento o que dizem ser certo
E engulo a vontade de meu ser:
Inócua vontade
De não estar aqui
E de repente sair
De respirar
E - sem culpa! - nada entender.
Por que captar tudo?
- Reservo-me o fastígio da ignorância
Dos tempos de alegria da infância
Que recordo em versos de caderno
Em tempos de inverno
Dentro de mim;
Quero, sim, a leveza de um poema terno
De velhice emérita e valor eterno
E o que realmente importa no fim:
Inócua vontade de apenas viver
De não estar aqui
De respirar (suspiro)
E - sem culpa! - nada entender...


Sofia Senna e Rafael Casal / Maio de 2009


domingo, 30 de agosto de 2009

A Fuga

Uma luz clara e perfulgente. Era o que sibilava longe quando abri os olhos. Sibilava convidativa e inerte. Uma luz. Precisei de um tempo para os meus olhos se acostumarem à penumbra. Frações de segundos até assimilar as dimensões negras de onde me encontrava. Dimensões em escala de cinza. Apáticas e insalubres.Tornei a repousar no escuro. Pude, no ato, sentir as pálpebras secas e crespas deslizarem sobre o olhar fugitivo. Não queria acordar. Não queria voltar àquela realidade. Queria me reservar o direito do sonho. Queria. Apenas queria o sonho... Permaneci perdido em minha própria escuridão, que superava a densidade obscura do chão que me continha. Não demoraria a perceber que preciasava acordar do meu sono letárgico. O sonho se fora. Já estava em outra frequência.

(Pausa necessária à reflexão do desejo)

Debati-me em meu íntimo, não querendo conter - em definitivo! - a verdade a que fora exposto: era hora de levantar. Era hora de esquecer o conforto do estado torpe. O conforto dos traços luzidios do meu sonho ilibado. Não me restava outra escolha. Era a hora de voltar à vida. Antes de expor outra vez minhas pupilas à luz bruxuleante, tentei captar a essência de minha condição límbica. As mãos provaram da textura da terra sob meu corpo. Fria e farinácea. Pude senti-la como parte de mim, do lodo que escorria de minhas entranhas e no qual agora estava eu, irrefutavelmente imerso. Meu lodo, meu limbo, meu eu mais agônico e sincero.

O cheiro ácido que me invadia o nariz não se demorou. Logo já não sentia nada além de um resquício de éter maligno. Nada além de uma fração ilógica dos cheiros que ainda me faziam lembrar do sonho perdido. Na boca? - Somente o gosto de sangue digerido e a lembrança do beijo não dado. Lembrança presa em cada gota de cuspe. Cada gota desperdiçada em minha pele contaminada pelo barro emético que me tomava. E o silêncio. O puro e melódico silêncio.

(Suspiro)

Outra vez a luz. Agora já não custei a adptar-me. Era uma condição irrevogável. Era uma ação necessária. Deveria agora levantar e tentar me recompor. Era a hora de crescer. Sentei. Olhei para os lados. Olhei para todos os lados! - e nada além de um escuro abafante e uma luz ao longe. Que me caberia fazer? Ora, resposta imediata. Levantei-me. Quase perdi o equilíbrio. Quase retornava à imundície da qual me libertava no momento. À escuridão saprófaga da qual eu vinha. Cair outra vez? - Não. Não fazia sentido. Já havia levantado e não me permitiria tal vacilo. Quase perdi o equilíbrio. Mas abri os braços como quem deseja o vôo. E o desejo de ir embora me manteve de pé. Respirei fundo. O ácido voltava a incomodar. Não menos do que o frio que se mantinha em meu corpo nu. Estava desprotegido. Nu. Somente o corpo e o barro. Pele e sujeira que eu jamais conseguiria arrancar. A sujeira das quedas antigas. A sujeira que hoje me servia de segunda pele. O barro solidificado. A armadura crua e sensível.

Respirei. E eu nada mais era do que ácido e pó.
Respirei. Cada fração de ar que conseguisse captar me seria necessária. Precisava garantir que teria sustento físico. Garantir que não desfaleceria quando já não tivesse o sustento da emoção. Quando tudo fosse mais orgânico do que racional. Estava escuro. Um escuro opressor e diáfano. Um escuro que se traía pela própria existência. Por ser apenas a ausência da luz. Estava escuro, mas havia uma luz! E, obviamente, como quando corri ao encontro do mundo fora do útero materno (ávido de liberdade e desejo), correria até esta luz. Era mais do que qualquer razão. Era apenas o instinto. Única e exclusivamente o instinto. E o que me restava senão ele?

Comecei a caminhar. Era um corredor longo. As paredes eram distantes umas das outras. Um túnel negro de lembrança e vontade. Hilário imaginar que me pareceu tão comum. Estranhamente comum. Não procurei apoio em nada. Tinha que caminhar sozinho. Eu sabia disso. Eu sabia que, para arrastar-me até a luz, se as pernas não fossem o bastante, os braços deveriam sê-lo. Eu não tinha outra escolha. Ou eu chegava ao fim do túnel, ou eu chegava ao fim de mim mesmo. Emérita escolha: o fim do túnel. Os pés pareciam pregados ao chão. Cada passo que eu dava me custava muita energia. Mas eu continuava. Reunia forças. Não sei bem de onde as conseguia, mas sei que elas existiam. E sem preocupar-me muito com a dor, comecei a caminhar. Podia sentir o sangue escorrendo de mim. Sentir partes do meu corpo ficando ao longo do trajeto. Partes do meu corpo ficando no barro, ficando para trás. Já não me pertenciam. Já não eram, por inteiro, partes de mim. Que ficassem, pois, para trás! Mesmo que me custasse a pele e o sangue. Ah, os pés! Estavam machucados. Há muito foram perfurados e agora voltavam a sofrer. Mas era necessário andar. Ficar parado não me traria a certeza da mudança. Talvez precisasse sentir o ácido em meus pulmões para crer que existia o que perseguir. Era necessário andar. Nem que fosse pela vontade de fugir de toda minha sujeira. A sujeira na qual submergi por escolha. Por não saber que era sujeira. Por não saber que era (e é) demasiadamente perigoso mergulhar.

Caminhar era um tanto quanto difícil. O chão estava molhado. As pedras aciculadas machucavam os cortes pre-existentes e agrediam o que ainda me restava de pele hígida. Escorregava, vacilante, equilibrando-me a cada passo para não entregar-me ao cansaço e voltar ao lodo do qual eu vinha. Equilibrava-me pela ânsia de chegar ao fim deste meu caminho ignoto. Não podia apressar o passo. Se tencionasse correr, tenho certeza que cairia de novo. Passo a passo, certamente, chegaria - apesar do maior tempo que me seria roubado. E indiferente ao terreno, o desejo de ir embora me mantinha de pé e eu seguia irresoluto. A luz me esperava. Podia senti-la. Podia senti-la. Podia senti-la.

(Momento reservado à inquietude dos olhos eritemáticos)

Portas? - Sim. Portas. Não reparara que as paredes laterais continham muitas portas. Eram sedutoras. Sentia-me impelido à busca. Talvez me levassem para um outro lugar. Uma porta sempre leva a algum lugar. É sua condição prima: Ser o referencial de existência de um outro mundo que está do outro lado. Um universo novo de escolhas e oportunidades.
Fechei os olhos. O crispar das pálpebras já não incomodava tanto. Tornara-me insensível à sua agressão. Como sempre. Como tudo. O que fazer? Seria válido gastar minha inquieta energia numa tentativa louca de encontrar uma porta que me permitisse fugir rápido daquele lugar? Quanto me custaria acreditar que existia mesmo um jeito menos doloroso de passar por tudo aquilo? Abrir os olhos já não era também tão abafante. Já não temia aquela realidade. Aprendera a me conformar com a minha condição. Se era realmente necessário que fosse assim, pois bem! Que fosse.Entreguei-me ao desejo ilógico de sumir de mim mesmo e fim.

(Acesso de loucura e frustração)

Sentia medo. Sentia muito medo. O ar se tornara rarefeito em segundos. Mas eu já não queria pensar. Nem conseguiria, caso pudesse. Era necessidade orgânica de vida. E, também, necessidade orgânica de morte. Eu corria. De um lado ao outro. Sentindo o sangue fluir veloz por minhas veias. Sentindo o ácido rasgando as minhas narinas. Sentindo o peso do lodo. Sentindo que em breve já não sentiria coisa alguma... Debatia-me pelas paredes. Contra as portas. Precisava encontrar um caminho. Estava desesperado por um caminho. Apenas um que me levasse para longe de toda aquela imundície. Era só o que eu queria: um caminho.

Mas não encontrei. Tentei abri-las. Empurrá-las. Derrubá-las. Nada. Nada. Nada. Estas portas não levavam a algum lugar. Não eram portas comuns. Se do outro lado me esperava uma outra luz além daquela que agora já não estava tão longe, eu não saberia dizer. Não consegui fugir. (Não achei mesmo que conseguiria, para ser muito sincero. Seria inopinadamente fácil. Não era para mim. Não era para meus pés). Não adiantaria mais querer sumir de mim mesmo.

Não consegui fugir. Mas, na verdade absoluta, de que me valeria não tentar? O sangue? A economia de forças? Ora, elas acabariam a qualquer instante. Preferia não conviver com a culpa de não ter tentado. Esta, em suma, eu não suportaria.

E de repente me sobreveio o espasmo da respiração. Queria o ar. Não porque cada parte do meu corpo já reclamava sua falta, mas sim pela ânsia do grito. Queria apenas a força para gritar. Apenas o desejo do grito! Insanamente abrir a boca e, em frequências desconhecidas, bradar todas as minhas angústias em um grito. Quer fosse ele de coragem, quer fosse de desespero. Frequências desconhecidas que, em ressonância, estremecessem meu corpo. Que me desintegrassem, irresolutas, em um véu de lama e sangue.

E eu gritei.

(Respeito ao momento do grito)

...

E, enfim, eu entendi: as portas estavam ali para que eu me certificasse de que deveria caminhar até o fim. Não existiam atalhos. Não existiam caminhos mais curtos, mais fáceis ou mais tranquilos. Não existia para onde ir senão a luz que me aguardava no fim de tudo. Ou caminhar ou estagnar - Eis a escolha. Não existiam atalhos. Não existiam atalhos. Não existiam atalhos. (Precisava me convencer disso). As portas não me levaram para o universo de paz que me esperava do outro lado. Mas as tentativas ávidas de fugir me aproximaram da luz. Ter tentado escapar me deixou mais perto do meu fim já predito. A tentativa foi suficinte para me deixar próximo de minha esperança de fuga. Quando dei por conta, já estava próximo o suficiente para senti-la. Ah, a luz. Ela estava lá. Ainda não se apagara. Ainda me esperava inerte. Sibilando convidativa. Agora mais perto. Agora muito mais perto. Tão mais, que eu podia senti-la em minha pele. Seus raios desenhando em meu rosto a sombra do corredor sujo. Podia senti-la. Podia senti-la. Podia senti-la.

Mas algo me fez tremer. Não sei se de medo ou curiosidade. Não sei se neste ponto do trajeto eu seria capaz de sentir medo. Mas me despertara do estado hipóxico em que repousava. Um sombra. Um contorno bem definido. Movimentos. Um ser humano - Ao menos, era o que a sombra sugeria.Alguém que me esperava à sombra da luz? Alguém para me ajudar, por piedade, a sair daquele lugar gélido? Um ser humano. Um igual. Entretanto, dessa vez fiz diferente. Duvidei. Não me enganei. (Não achei mesmo que o faria, para ser muito sincero. Seria inopinadamente fácil. Não era para mim. Não era para meus pés).

Reuni coragem. Inventei vontades e reformulei emoções.

Os pés já não respondiam. Apenas segui em frente. Em direção ao contorno fosco que se desenhava próximo à fonte de luz, que eu não conseguia identificar com precisão a origem. Ele se moveu em minha direção. Parei. Ele também parou. Podia ver o caminho atrás dele. Era um corredor. Ele também estava em busca da luz. Ele também caminhara na direção daquela última esperança. Não sei por quanto tempo estivera ali ou desde quando me observava. Mas, certamente, seguia cauteloso. Repetia os meus movimentos. Não vacilava. Como eu, obviamente, tinha medo. Seria seguro continuar?

Não fazia mais diferença. Não mais.

A aproximação foi lenta, porém progressiva. Um movimento. Um passo de cada vez. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Caminhava com cuidado e destreza. Como não era próprio de mim. Como nunca fora próprio de mim. Mas a situação exigia. E eu deveria me adaptar. Deveria me preservar, uma vez que fosse. Era sobrevivência. Era instinto.

Esquerda. Direita.

Recuei um pouco. Fiquei confuso quando o contorno fosco tornara-se vagarosamente nítido. Como seria possível? Eu não podia acreditar na realidade que gritava em frente aos meus olhos cansados. Como seria possível? - voltei a me questionar. Um igual... Um igual... Um igual.

Não. Não era um igual.

Tentei captar a essência daquele meu momento epifânico. Examinei os contornos do corredor. Estudei cada detalhe de toda aquele grande caminho, agora iluminado e cheio de minhas próprias necessidades. Estudei de um lado ao outro. Estudei cuidadosamente e então me certifiquei de que o meu palpite procedia. Enfim, bastava-me apenas entender o por quê de toda esta caminhada obscura. Aproximei-me outra vez do meu algoz. Agora, claramente, podia contemplar a podridão da figura que, de certo, não me machucaria. Pude sentir a sua solidez. Enconstamo-nos as mãos. Sim! Ele existia! Não era uma alucinação. Eu podia provar da sua matéria. Da sua textura. Mas não senti sua respiração. Apenas pude perceber o descompasso da minha. Não senti seu cheiro, nem tampouco o seu calor.

Uma figura. Um semblante. Um ser humano. Não um igual, mas Eu mesmo.

Somente a minha imagem distorcida. Eu mesmo... Ofegante tentei reconhecer os traços do meu rosto naquela projeção virtual de um corpo esfacelado. Tentei, sequioso, perceber naquele reflexo disforme a minha idéia. Conseguira me reconhecer por pouco. Pelo instinto. Sim, eu estava muito diferente. Não conhecia aqueles olhos tão secos. Aquela pele tão suja. A escuridão que me revestia. Fitei os traços com afinco numa tentativa insana de encontrar indícios de vida humana. Qualquer indício de alma.

E, obviamente, encontrei.

Sentia que parte do que eu fora um dia permanecia incólume em mim. A consciência do meu eu mais íntimo e intocado. Residia a essência. E eu podia senti-la. Podia sentir que algo - ostensivamente - sobrevivera a todo aquele caminho obscuro. Que o último resquício de humanidade que continha me fora suficiente para chegar até ali e me identificar como alguém. Um corpo. Uma mente. Eu mesmo.

Nada além disso.

(Choro exigido pela intensidade da descoberta)

O que fazer agora? Tudo, enfim, acabara? Não. Eu sabia que não. Seria ironicamente desnecessário. Não era para mim. Não era para meus pés. O resquício de vida simbiótica que vegetava em minhas entranhas conhecia o destino prometido. Não acabara. E eu sabia o que fazer.

Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita.

Aglutinei toda a coragem que me fora concedida pela caminhada. Coragem que sequer sabia possuir. Era o momento mais importante de toda aquele trajeto obscuro. Era o fim. Já não me cabia voltar ao lodo de onde viera. A tendência era seguir em frente. E habitava em mim uma certeza irrefutável: A felicidade me aguardava ansiosa. EU já podia sentir a sua vibração. Mesmo estando sujo, cansado e desanimado. Ela me esperava! E este tão confortante sentimento me revestia com a força de que eu precisava para não me importar com os cortes, ou mesmo a dor. Já não me icomodavam mais. E eu me preparei para meu último ato naquele caminho que parecia não terminar. Respirei. E eu já não era apenas ácido e pó. Era também lágrimas e sangue. Respirei. Cada fração de ar que me invadisse os pulmões seria necessária. Tudo era tanto orgânico quanto racional. Dois objetivos que convergiam para um único ponto. Era um corpo e uma mente. Era eu mesmo, desejoso por liberdade. A liberdade, que enfim encontrei e muito próximo estava de possuir.

Abri os braços como quem deseja o vôo. Era este o momento de partir rumo ao infinito. E eu fui ao encontro de minha felicidade.

Senti a aproximação de minha imagem disforme. Mais veloz do que os meus prórpios pés. Mais ansiosa de mim do que eu jamais pudera imaginar que estaria. E eu fui ao encontro dela. Podia apenas sentir o sangue escorrendo de cada parte do meu corpo nu. Importr-me-ia agora com a dor? Daquela última tentativa dependia minha vida. E eu não desistiria tão fácil. Ora, chegara até ali. O único caminho a ser seguido era este. Eu não tinha escolhas. Era correr ou morrer. E eu corri. Suor e barro. A pele reclamava. O ar rasgava minhas narinas. Sequer pude manter os olhos abertos. Correra como nunca fizera. Com a vontade mais pura da alma. Correra tomado por todos os desejos mais loucos e os sentimentos mais desesperados. Correr. Apenas pela certeza de que logo ali estava a luz de que necessitava.

O choque foi doloroso. Mas não fui detido pela solidez do meu reflexo saudoso de mim. Encontrei-o. Entregamo-nos um ao outro e voltamos a ser um só. Pude sentir que me completava. E, enfim, eu o reencontrei. Agora estava em mim outra vez. Agora éramos apenas um. Um Eu, um ser digno e completo.

Luz. Vento. Paz.

Eu estava certo. Entendera, por inteiro, o que me acontecia. Não fora em vão tanto sangue derramado. Não perdera tempo e energia numa busca cruel e infundada. Já podia sentir o gosto da queda. Os estilhaços que me perfuravam todo o corpo não me impediram de seguir rumo ao céu de luz que me aguardava. Eu sangrava, suava, chorava, mas não me importei... Eu estava livre.

E sentindo o vento limpar os olhos e a pele, eu pude compreender, em definitivo, que chegar ao fundo do túnel e ao fim de mim mesmo era uma só coisa.

Rafael Casal / Agosto de 2009