"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Recado


- Sim, eu não nego.
Pois o que, nesta pobre rima, alego
É um pouco de estimada atenção.
Não a quero como amor cobrado,
Porque do muito que tem me dado
Percebo um quê de fardo
Do qual não penso em culpa assumida;
Quero apenas sua paz benfazeja
Pois – caso, cego, ainda não veja –
És uma parte do que chamo vida,
Uma célula dessa ima ilusão.
Falta a coragem de me olhar nos olhos?
- Então segure na minha mão.
Use o tato!
Porque, de fato,
A existência do outro nos basta.
A palavra,
O som,
A rima.
[Essa desengonçada e escalafobética rima]
Tudo isso já nos anima
Tudo isso entre nós contrasta!
E de forma grotescamente nefasta
Ensina-nos uma bela lição:
Indiferente às partes casualmente homônimas
Toda essa nossa afinidade mínima
Mostra-nos, fusilânima,
Que algumas coisas simplesmente são.
- Confesso a falta de sua voz,
Mas já não reclamo.
Em verdade, é mais simples sentir,
Omitir, sorrir, assistir, abstrair
- Quem sabe, às vezes, até mesmo agredir -
E todos mais que não nos deixam mentir
E todos mais com que, em síntese, exclamo:
Amigo, eu te amo!
E, mesmo sem dizê-lo veloz,
Não tê-lo me seria atroz.
- Sim, eu confesso.
Que, apesar de ao seu dia não ter acesso,
[Sabendo o preço
E por tanto agradeço]
Sua alma me é aberta.
E por sabê-la te ofereço amizade,
Verdade,
Intimidade,
Por termo-nos nas horas mais certas.
Você está comigo.
Amigo.
Com o direito que confere o dito.
Amigo.
Amigo.
De agora até todo infinito.




Rafael Casal / 27 de Outubro de 2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Dia de Sol


E, enfim, você chegou.


.


Realidades transfiguradas invadem meu campo de imaginação quando penso no martírio de angústias que me foi o longo período em que estiveras distante. Sim, eu esperei por você durante muito tempo. Foram dias e dias recluso em minha própria loucura, perdido em verdades e mentiras íntimas; sonhos e realidades que já não distinguiam-se em seus limites tênues. Horas a fio tentando projetar com cuidado o momento exato de nosso encontro. Segundos intermináveis, em que absolutamente nada mais me parecia convidativo, senão a imagem difusa que tinha inventado de nosso futuro perfeito.


Onde estive? - Trata-se de uma boa pergunta. Acredito eu que perdido entre meus amores pseudo-concretos, na busca excrucitante por nós mesmos. Na procura por qualquer indício de sua existência. Na interminável espera de apenas um único sinal de realidade. Um sinal de que a paciência era válida, de que não tardaria a chegar o meu tão prometido amor verdadeiro.


De fato, muitos foram os momentos aterrorizados em que nada me era mais alucinante do que a idéia de desistir e me entregar, de forma definitiva, à consciência ilícita de que eu, simplesmente, não merecia. Entregar-me à certeza venéfica de que o futuro não passava de uma ilusão forjada por mim como mecanismo de fuga, uma maneira de negar minha condição de abandono e mortificação lenta e progressiva. A certeza irresoluta de que a felicidade era uma invenção ridícula.


Ridícula e infantil. Como sempre me pareceu tudo aquilo que não fosse parte efetiva do mundo concreto a que, por hora, estamos tão arraigados. Sim, ridícula. Mas valeria à pena duvidar de tamanha esperança? - De certo, que não.


Imagino que não me era direito duvidar dos verdadeiros sentimentos e de suas implicações práticas. E por isso, todas as vezes em que fui assaltado pela violada vontade do não-viver, eu preferi embeber-me da inquieta dúvida de sua existência. Mantive-me resignado em minhas necessidades. E mesmo que fosse tudo uma grande mentira, que tudo não passasse de uma promessa ilegítima e perniciosa, negá-la era uma realidade da qual escolhi não me apoderar.


Grande mentira? - Que fosse. Não estava em condições de rejeitar sequer uma farsa. E acreditei nela com todas as energias que poderia dispender na situação. Porque sempre fora mais fácil me enganar com verdades pouco questionadas. Sempre fora mais cômodo me convencer de que uma mentira dita e pensada repetida vezes, torna-se uma verdade fatídica. Sempre fora mais ingênuo fingir que acreditava nas minhas próprias mentiras.


Ora, eu apenas sentia. Não só porque queria sentir. Não só porque era próprio e lídimo de minha natureza humana (e entenda-se aqui o verdadeiro sentido da palavra). Mas porque sempre quis mesmo acreditar que tanta dor e tanto problema não seria em vão. Acreditava porque, no fim de todas as certezas, no mais profundo e hermético limite do eu, sobrevive a noção instintiva de que existe um motivo de ser. Existe uma razão intuitiva que diz "Não desista".


[Necessidade máxima de justificar-se a si mesmo e reconhecer a representação valorativa da resignação]


.


Raios de luz invadiram minha janela. Despertei com o calor morno salpicando meu rosto de saudades ainda não sentidas. Pude perceber um leve ardor a corroer-me as loucuras. Os sentimentos nus, sem defesas, sem proteção, reclamavam da pele exposta. Da pele. Do corpo. Do espírito. Reclamavam a ausência de tudo que não tivera e ainda mais do que viriam a ter. Quando abri os olhos e tomei consciência de mim, talvez não de mim, mas de quem fui um dia, coloquei-me a contemplar o outro lado do vidro fosco. Tentei focalizar as formas que se projetavam sobre a minha retina, mas não consegui reconhecer nada muito diferente da escuridão da madrugada gélida. Precisava abrir os olhos da alma. Precisava aprender a receber a luz. Certamente tanto tempo de preparo e espera me roubara a sensibilidade de perceber que tinha chegado o momento que eu aguardei ansioso.


O nosso encontro. Ou melhor, o nosso reencontro. Sim, reencontro. Porque a sensação que tive quando, enfim, tombei com a lúcida certeza de que você tinha chegado, foi irrefutavelmente de que já nos conhecíamos de outros caminhos. Como se estivéssemos todo o tempo nos preparando para este momento tão único em que poderíamos olhar um para o outro, tocar-se mutuamente e sentir que, em realidade, existia uma promessa a ser cumprida. Sentir que todo este tempo de planos e medos não foi perdido. Como se cada segundo que, hoje, dividimos tivesse sido planejado com cuidado já há muito tempo.


Diferente não poderia ser. Porque não se tratava apenas de um encontro de corpos. Não apenas de mais um dia a ser guardado no meu compartimento de memórias secretas. Foi diferente. Foi simplesmente diferente. E, engraçado, já não fomos tomados de assalto por tal diferença, porque, desde o início, desde os planos, antes mesmo do toque efetivo, sabíamos que assim seria. Com você e eu tudo é, foi e sempre será diferente. Explicação? - Ora, muito simples: tratava-se não de um beijo, um abraço, uma dança, mas (e hoje, digo isso com a convicção máxima própria de um poeta livre) do encontro definitivo de almas repartidas.


Ridículo e infantil? - Talvez. Mas, inegavelmente, é real. E, apesar do ainda incipiente convívio, assim como cada instante que compartilhamos, as certezas de que temos um futuro melhor no aguardo de nossa chegada são mais que palpáveis. Um futuro nosso. Só nosso. Só nosso e de mais ninguém. Um único caminho para você e eu. Um único caminho. Um único futuro. Um único destino. E tudo isso porque já não pode ser de outra forma. Porque reconhecemo-nos um no outro. Porque, enfim, estamos conscientes de que somos partes separadas de um único ser. Uma única alma habitando dois corpos.


Impossível - e até mesmo ilógico - não agradecer por todo o bem que você me faz. Por ter transformado minhas madrugadas frias em dias iluminados e cheios de alegria. Por tornar todas as minhas dúvidas e fragilidades em lembranças já sem sentido. E, acima de tudo isso, dos abraços, dos beijos, do carinho e do cuidado, eu devo agradecer pela escolha. Você me escolheu. Você me quis e eu preciso agradecer por você fazer de mim alguém reconhecidamente digno do amor. Por me proporcionar o prazer de sentir a convicção lenitiva de que eu existo.


Gosto de você. Gosto de ficar com você. Do seu sorriso. Do seu cheiro. Do seu beijo. Do seu calor. Gosto de tudo em você. De absolutamente tudo. É isso se deve ao simples fato de que você é a personificação dos meus desejos mais complexos. Você é o tudo e para tudo. O amigo, o amor, o amante... É, de fato, tudo aquilo que me faltava.


O mais perfeito de toda essa conjuntura é saber que valeu à pena a espera. Que todas os segundos sem você antes serão multiplicados e reproduzios em sorrisos sinceros e espontâneos. É tomar como verdade inquestionável a certeza de que tudo que aconteceu até então me preparou para você. Saber que toda dor sentida e todos os erros cometidos (os confessados e os omitidos) me tornaram não o melhor que eu deveria, mas o melhor que eu poderia ser para você. O melhor que eu posso te oferecer. O mais íntimo. O mais sincero. O meu eu, agora também seu.


.


Hoje, a consciência ilícita de que não mereço a felicidade já não me atormenta. Consigo ver a luz entrando pela janela e não me assustar. Posso enxergar o futuro através do vidro fosco. Sim, eu consigo. Porque não me faltavam os olhos para enxergar. Não me faltava a alma preparada para o que estava do outro lado da janela. Faltava você para me mostrar que eu posso enxergar. Faltava você para abrir os olhos da minha alma.


E, enfim, você chegou.

E agora, todos os dias são de céu claro. Todos os dias são limpos e livres de quaisquer jugo. Todos os dias são dias de amor e tranquilidade.


Todos os dias são dias de Sol.




Rafael Casal / 19 de Agosto de 2010

(Parte IV de "Confissões pouco trabalhadas")

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Os sete elementos

(...)

Não lembro exatamente do nosso primeiro contato. Nem como, nem onde e muito menos por qual exato motivo. Mas, certamente, ele fora aprazível, porque desde sempre tive plena certeza de que você estaria comigo. E apesar de, ao tempo, não compreender por completo a dimensão do que me ocorria, convencido estava de que você era diferente de todos aqueles que, contigo, invadiram minha rotina.

Sim! - Um dia especial que se perdeu nos limites de minha memória não-declarativa.

De fato, as datas pouco importam no advento do tempo e sequer consigo marcar o momento específico em que seus olhos repuxados e seu sorriso nipo-brasileiro transformaram meu mundo. Contudo, desde então, tudo que não envolve você muito pouco me interessa.

.

E na ausência da lembrança real, limito-me a reinventar, numa íntima fantasia, este belo dia em que saimos de nossos vôos solitários e entregamo-nos ao gracejo de voar em revoada.

Este belo dia.
Este nosso encontro não-marcado.
Leve, como a brisa de um dia morno de outono.

(...)

De início, os dias nos foram generosos. Horas e horas divididas. E mesmo que fosse por uma imposição da vida, sempre fora delicioso desfrutar de sua companhia. Repartimos tudo. Os medos, as angústias, as frustrações, as vitórias e até o último biscoito recheado do pacote.

Dividimos o tempo e o espaço.

Dividimos a piscina.

E, quando mais urgente me foi, você me mostrou que eu poderia segurar em sua mão. E mais digno ainda: que eu poderia nadar sozinho e segurar na borda lisa de ladrilhos, pois esta mesmo escorregadia, daria-me a segurança de que tanto necessitava.

Confesso que estava me afogando. O fundo parecia muito mais fundo do que na verdade o era. E mesmo que ele estivesse ao meu alcance, as lágrimas me sufocavam e tiravam o foco de qualquer ponto de apoio, fosse este meu próprio pé aflito e irrequieto.

Devo a você minha vida. Sem seu carinho e cuidado, eu não teria suportado.

.

E agora mergulhar já não amedronta tanto. Porque conseguimos provar para nós mesmos que se não for possível tocar o fundo, cabe o esforço válido de chegar na lateral.

O esforço de respirar vida.
O desejo de mergulhar mais fundo.
Límpido como a água que escorre pelas janelas molhadas de inverno.

(...)

A luz parecia distante. As pupilas, não acostumadas, reclamavam um pouco mais de vida e cor. Mas tudo adquirira um tom pastoso, sem graça. Tudo - absolutamente tudo - se mostrava menos interessante do que deveria e poderia ser.

Vivi o meu mundo de escuridão.

Meus olhos exigiam um tempo de reclusão. Desacostumaram-se a enxergar a beleza das coisas. O apelo de tudo que me cercava era incessante. O estímulo, invariavelmente, atormentava-me o juízo. Mas eu não cedia. Sim, eu estava perdido em meus próprios receios.

De sonhar.

De, outra vez, viver.

De, quem sabe, até sorrir.

.

E, então, seu brilho, tão escasso aos seus próprios olhos como o meu o era a mim, iluminou o pouco de esperança que ainda vegetava em minhas entranhas.

A esperança de ter com quem caminhar.
A vontade de aproveitar cada feixe de luz do dia.
Diáfana e oblíqua como a essência ébria de um sol de verão.

(...)

Experimentamos a vida!

O calor dos desejos - Todos eles muito insanos.
O ardor das paixões - Todas elas com início, meio e fim.
O queimar dos amores - Todos eles muito urgentes e infinitamente incompreensíveis.
Tudo como próprio da idade em que nos encontramos.

Demo-nos o direito de aproveitar cada gota de fogo que a juventude nos concede. E no auge dos nossos dezenove anos podemos, com classe e muito conscientes do perigo e prazer disto, dizermo-nos conhecedores de vinhos, conhaques e todas as mais semelhantes.

Provamos as poções, os antídotos, os venenos...

.

E não teria sido diferente. Porque precisávamos sacudir, se não o todo, pelo menos o nosso mundinho. A nossa vidinha, até então um tanto quanto tediosa.

Nossa existência limitada.
Nossa infância obsoleta e encarcerante.
Incinerada nas chamas do, hoje, talvez não tão conhecido, domínio de si.

(...)

- Você está sentindo o cheiro?
- Cheiro de quê?
- Cheiro de Liberdade!

.

E nós a conhecemos. Se não a que nos permite fazer absolutamente tudo que queremos, no mínimo a que nos concede a leveza de ser ou não o que queremos ser.

A leveza de ser quem é.
A coragem de viver intensamente.
Impertérrita como nossos sapatos, já cansados, mas irresolutos.

(...)

Foi então que tomamos consciência do amor.

Conseguimos voar juntos. Por lugares nunca antes visitados. Em caminhos só nossos. Em viagens só nossas. Viagens que mais ninguém se permite fazer além de nós mesmos. Nem por nós, nem conosco. Viagens por sentimentos, por momentos, por ilusões que só cabem em nossas cabeças de crianças-adultas de dezenove anos.

.

E, enfim, fui tomado pela certeza lacônica de que agora a vida faz mais sentido. Porque você existe em meu mundinho de criança perdida. Porque você não é apenas uma amiga (apesar de que isso já quer dizer muita coisa). Você é uma extensão de minha consciência.

A consciência de que vale à pena viver.
A irrefutável certeza de que tenho encontrado tudo em você.
Simples e ubíqua como o sentimento que transcende a natureza efêmera da palavra.

(...)

Um futuro nos aguarda, ansioso. Ainda temos muitos copos (e corpos!), muitos abraços, muitos beijos a experimentar. Como também muitos medos, problemas e perdas.

Sim, é assustador.

Mas já não tenho medo. Se você vai estar comigo, eu sigo. Até mesmo de olhos vendados, caso seja necessário. Porque estou seguro ao seu lado. Envelhecer é inevitável. Mas fazê-lo em sua companhia deixa de ser um suplício e se torna uma dádiva.

.

E logo tudo será mais feliz. Encontraremos sorrisos em todos os cantos. Na terra, em cima da terra e embaixo da terra.

A terra que nos é de direito.
A terra que nos fadará à eternidade.
Mansa e suave como o nosso sonho de primavera.



Rafael Casal / 26 de Julho de 2010
(Parte III de "Confissões pouco trabalhadas")



quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sinestesia

Essência de fogo.

Hilário como ainda consigo fechar os olhos e senti-la. Como vivo me parece o aroma de nossos problemas, tão intenso que, mesmo já inquietamente rarefeito, arde em minha consciência. Sim, ele ainda me consome. Não como outrora me enchia de loucura. Não como no momento do amor. Mas, de fato, resta-me o resquício do seu perfume suado. E, apesar de sequer tê-lo negado antes de sua partida, obrigado fui a embeber-me da connvicção cotidiana de que tudo não passara de uma parosmia idiopática inventada por nós mesmos.

Acredite, já não dói tanto. Porque mesmo tendo sido assaltado de forma cruel por sua ausência, o pouco de você que em mim resta mais do que suficiente me é para toda a eternidade. Para o infinito de minha existência sobre-humana. Para o homem que nasceu no dia de nossa despedida, o menino que chorou sangue por não ter nada além para derramar.

Suficiente para toda a eternidade.

(E quão satisfatória é esse certeza do sempre)

Trata-se do você impregnado no eu. Do quanto de alma foi dedicada a mim por ti e que hoje me é propriedade. Como se o seu toque, grafado em chamas na minha pele, tivesse vida própria e eu pudesse percebê-lo, tocá-lo e até, talvez, entendê-lo. Ou pelo menos tentar. Como se todos os meus poros fossem extensão do seu corpo e a minha carne exalasse o seu cheiro.

Que é doce, como o eram seu olhos.
Um doce de bala de caramelo, muitas vezes enjoativo, mas que seduz e me fazia querer-te até a última molécula de açucar. Tão doce quanto poderiam ser, dadas as circunstâncias em que os encontrei: vazios, inquietos e sedentos.

Um doce de brincadeira boba de criança.

E provar desse alcaçuz irritante me era tão prazeroso, que quando enfim me dei conta da separação efetiva, já não conseguia sentir outros cheiros por perto, porque o seu era o mais forte e aprazível. Minhas narinas, já acomodadas, não estavam sensíveis a qualquer um que não fosse você. Meu cérebro simplesmente não registrava.

Não me interessavam os ácidos, amargos, azedos ou salgados. Só me tocava o espírito o seu cheiro doce. A sua essência melíflua. Porque seu cheiro era o meu cheiro, sua pele era a minha pele. Estava em mim. No meu quarto. Na minha cama. Nas minhas roupas. Nas minhas células. Em absolutamente todas as minhas células.

Essência de fogo.

O fogo que me fazia tremer ao contato dos lábios secos, das línguas úmidas, dos braços aflitos, das pernas ansiosas... O calor que me levava ao limite das minhas dimensões terrenas. Não porque, em si, era dos mais intensos, mas porque tornava tudo de planos humanos que um dia eu arquitetara para mim em realidade transfigurada. O fogo de um amor inventado, mas nem por isso de menor valor.

Essência de fogo e fogo de essência que eu já não posso ter.

Porque não me é mais permitido. Porque não faz mais sentido. Porque demos ao outro tudo aquilo que pudemos. O melhor de nossos corpos, de nossas almas, de nossas frustrações. O mais íntimo. O mais obscuro.

E acabou.

Não o amor, porque amores verdadeiros não se extinguem. Eles são resolvidos. Mas o tempo que nos foi reservado pelo destino. O tempo que tivemos para, juntos, respirar a essência da felicidade.

Sim, é nostálgico. Mas não tenho o direito de esquecer. Como fazê-lo, se olho para o homem que me tornei e claramente te vejo? - Não posso! Porque, como é próprio dos grandes amores, hoje sou um ser humano melhor. Você me deu a oportunidade de mudar. E hoje, satisfeito e resignado, com a certeza plena de que valeu muito à pena, reconheço em mim a parte de você que me foi concebida com tanto cuidado.

O pouco do você impregnado no eu.

O seu cheiro de caramelo que me afoga os sentidos quando fecho os meus olhos e te encontro no plano dos meus amores eternos...

Rafael Casal / 08 de Julho de 2010
(Parte II de "Confissões pouco trabalhadas")

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Interjeições desconexas

Já faz dias que venho tentando organizar as palavras. Obviamente, sem muito sucesso.

E a sensação ubíqua é a de que tenho sido engolido pelo correr das horas. As palavras são muitas. As vontades também. Quanto às saudades, eu já nem falo. Tenho todos os subsídios mentais e físicos de que preciso para me perder em frases de efeito e textos longos bem elaborados.

Mas, simplesmente, não consigo mais escrever.

Não me pergunte por quê. Eu não tenho pensado muito acerca, e por tal motivo, não saberia responder de forma definitiva. Sim, não tenho pensado muito. Em nada, para falar a verdade. Não por falta de vontade, ou mesmo por falta de estímulo.

É preguiça.

Sim, preguiça. De pensar, de escrever, de futucar o que parece já estar morto em mim. De sair do confortável estado de esquecimento (ou pelo menos do dito e transfigurado esquecimento). Preguiça de lembrar, de organizar.

Preguiça de existir.

E é por isso que tenho esta sensação de que tudo está se empurrando. As coisas estão acontecendo, e eu pareço estar sendo arrastado pelo fluxo natural da existência. Caminhando apenas. Como nunca tinha feito antes. Como nunca tinha me permitido antes.

O que, de certo, mais me assusta é que eu estou bem, por mais que possa não parecer. Já não sei mais chorar. Trago aos lábios risos largos e contínuos. Ando me divertindo com pouca coisa. Tenho me importado menos e me preocupado bem pouco. Com tudo. Aliás, com nada. Estou perseguindo os ponteiros do relógio. E sabe por quê? - A preguiça tem me dado um conforto que já não lembrava - para não dizer, não conhecia. Está tudo muito sereno, muito tranquilo. Em paz, se é que esta é a melhor denominação para tal estado.

Claro que se trata de uma condição perigosa, pois estou começando a descobrir que ainda não sei conviver com tanta calma e aconchego. Porque as palavras se desorganizam, perdem-se em seus próprios significados. Como se não precisassem ser postas em ordem, como se tudo pudesse simplesmente permanecer sem leis ou regras bem definidas (ou mesmo mal estabelecidas). Como se tudo não tivesse um sentido além do medíocre fato de existir.

É o estado do "não se importar".

O estado do não-sofrer, do não-sentir, do não-pensar, e por extensão, do não-viver.

Começo a me sentir um jovem rabugento, porque durante muito tempo o que eu mais desejei foi conseguir não me preocupar, não me importar, não me irritar, não me envolver e todos os verbos mais relacionados. E agora, indubitavelmente, começo a considerar tudo isso muito vazio. Começo achar que tudo isso é o Nada (com N maiúsculo), ora tão desejado, ora tão temido.

O pior de tudo (ou melhor, confesso já não saber): quando enfim consegui, estou seguro em dizer - Ser feliz é muito cômodo (para não dizer chato, pois prefiro ainda não adjetivar dessa forma).

E, para falar a bem dita verdade, eu não sei se quero mais tanta falta do que falar.


Rafael Casal / 24 de Maio de 2010
(Parte I de "Confissões pouco trabalhadas")

segunda-feira, 26 de abril de 2010

De Monstrar


E por ventura,
Nesta nossa loucura
Seria o agora
A hora de demonstrar?
Não!
Não!
De monstrar.
Porque já se levanta apressada,
Suntuosa e enviesada ,
A dita saudade.
Sim!
Sim!
É verdade!
Não cabe mais demonstrar.
Acredite,
Porque acima do sentimento que existe
Agora é a hora
De (apenas) monstrar.
Só resta o momento
Em que o sentimento
(De)Monstra-se em seus próprios limites.
Sim, ele existe!
Mas de que vale somente existir?
Ora,

É claro que de quase nada.
Porque acabou o conto de fadas
Acabou a brincadeira engraçada
E por ventura,
Esta noite escura
É a silente e inquieta hora
- O Agora -
Em que tudo foi jogado fora,
Em que a sorte foi desfigurada.


É hora de monstrar.

Diverte-se inocente criança
Com a sua fantasia!
Blinda-te de alegria
E reveste-se de esperança.
Mesmo que esta seja de mentira mo(n)strada!
Afinal,
Como pode ela te fazer mal?
Brinca,
Dança,
Porque na inocência de tua infância
Logo estarás definitivamente monstrada
E tudo será mais tranquilo.

Basta apenas monstrar-se.

Mostra,
Mo(n)stra,
Monstra,
(Demo)nstra.

E tudo será mais tranquilo.

Brinca,
Dança,
(De)Monstra toda esperança.

E por ventura,
Nesta nossa loucura,
A saudade será um nada
Apenas o resquício da vontade monstrada.

Brinca,
Dança,
(De)Monstra toda esperança.

E tudo será mais tranquilo.


Rafael Casal / 26 de Abril de 2010




quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Passado


Hoje,
Mais um dia como outro qualquer,
Dia comum
Dia de jejum
Dia de qualquer um.
Hoje,
Como todos que já passaram,
Como todos que ainda virão,
Mais comuns que os comuns,
Hoje...
Dias e dias
De choros e alegrias
De ridículas poesias
Como esta
Como muitas
Todas muito comuns.
Hoje,
Mais uma oportunidade para nada
Mais uma cotidiana charada
Mais comum que as comuns.
Hoje,
Mais palavras,
Mais saudade,
Mais necessidade.
E hoje continua sendo hoje
Mais um dia como outro qualquer
Que se vai
E não mais voltará...


Rafael Casal / 19 de Setembro de 2005 (antigo!)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Olhar de Alcaçuz

Rastreia-me, agora, mavioso olhar!
Atravessa os limites de minha essência
Feliz sejas tu, se for ela amor
Ávido por inverdades, caso encontre a dor
E (pronto esteja para tal dissabor)
Livre do fardo, se descobrir demência.
.
Saneia-me de incruências os confins sujeitos
Apupilados me são tais injúrios verbetes
Nem regras ou leis: apenas lembretes
Todos eles, acredite, são reversos defeitos;
Atento esteja para tudo! - Pois
No que, incertos do termo, denominamos "depois"
Apenas sobrevive o que é escorreito.
.
Vitupera, em favor, nossas mortes cotidianas
O todo se esvai a cada dor leviana.
Cromática retina é idílica promessa
E se olhas em mim, logo, em si, o choro cessa.
.
É de fato amor? - Ora, é só o que interessa.
.
Une os nossos destinos,
Meu doce menino
Afaga-me em pálpebras! - E o faz bem depressa.
.
Para que a alma não seja campo interino,
Apenas o sumo do que abomino:
Riso que a falta dos olhos confessa,
Tatos que atestam uma história pregressa
E escleras manchadas de gotas carmim.
.
Deleita-me em teu reflexo claro
E esconde-me em ti sem fátuo preparo.
.
Mescla o teu brilho em melódicas fases,
Invade o contexto e recria-me em frases
Mesmo que seja este o início do fim.
.
E assim, em teus traços, estará bem guardado
Um amor sempiterno de bobo namorado.
.
Trabalha-me em focos que te reflitam em mim
E banha meu corpo com teus olhos de luz.
.
Arrebata-me, inteiro, com tuas lentes tão vivas!
Melífluas conjuntivas,
Olhar de alcaçuz.

Rafael Casal / 18 de janeiro de 2010