"O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é, [...] ele mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações[...]
Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível[...]Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver[...]"

(J.K. Rowling)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sinestesia

Essência de fogo.

Hilário como ainda consigo fechar os olhos e senti-la. Como vivo me parece o aroma de nossos problemas, tão intenso que, mesmo já inquietamente rarefeito, arde em minha consciência. Sim, ele ainda me consome. Não como outrora me enchia de loucura. Não como no momento do amor. Mas, de fato, resta-me o resquício do seu perfume suado. E, apesar de sequer tê-lo negado antes de sua partida, obrigado fui a embeber-me da connvicção cotidiana de que tudo não passara de uma parosmia idiopática inventada por nós mesmos.

Acredite, já não dói tanto. Porque mesmo tendo sido assaltado de forma cruel por sua ausência, o pouco de você que em mim resta mais do que suficiente me é para toda a eternidade. Para o infinito de minha existência sobre-humana. Para o homem que nasceu no dia de nossa despedida, o menino que chorou sangue por não ter nada além para derramar.

Suficiente para toda a eternidade.

(E quão satisfatória é esse certeza do sempre)

Trata-se do você impregnado no eu. Do quanto de alma foi dedicada a mim por ti e que hoje me é propriedade. Como se o seu toque, grafado em chamas na minha pele, tivesse vida própria e eu pudesse percebê-lo, tocá-lo e até, talvez, entendê-lo. Ou pelo menos tentar. Como se todos os meus poros fossem extensão do seu corpo e a minha carne exalasse o seu cheiro.

Que é doce, como o eram seu olhos.
Um doce de bala de caramelo, muitas vezes enjoativo, mas que seduz e me fazia querer-te até a última molécula de açucar. Tão doce quanto poderiam ser, dadas as circunstâncias em que os encontrei: vazios, inquietos e sedentos.

Um doce de brincadeira boba de criança.

E provar desse alcaçuz irritante me era tão prazeroso, que quando enfim me dei conta da separação efetiva, já não conseguia sentir outros cheiros por perto, porque o seu era o mais forte e aprazível. Minhas narinas, já acomodadas, não estavam sensíveis a qualquer um que não fosse você. Meu cérebro simplesmente não registrava.

Não me interessavam os ácidos, amargos, azedos ou salgados. Só me tocava o espírito o seu cheiro doce. A sua essência melíflua. Porque seu cheiro era o meu cheiro, sua pele era a minha pele. Estava em mim. No meu quarto. Na minha cama. Nas minhas roupas. Nas minhas células. Em absolutamente todas as minhas células.

Essência de fogo.

O fogo que me fazia tremer ao contato dos lábios secos, das línguas úmidas, dos braços aflitos, das pernas ansiosas... O calor que me levava ao limite das minhas dimensões terrenas. Não porque, em si, era dos mais intensos, mas porque tornava tudo de planos humanos que um dia eu arquitetara para mim em realidade transfigurada. O fogo de um amor inventado, mas nem por isso de menor valor.

Essência de fogo e fogo de essência que eu já não posso ter.

Porque não me é mais permitido. Porque não faz mais sentido. Porque demos ao outro tudo aquilo que pudemos. O melhor de nossos corpos, de nossas almas, de nossas frustrações. O mais íntimo. O mais obscuro.

E acabou.

Não o amor, porque amores verdadeiros não se extinguem. Eles são resolvidos. Mas o tempo que nos foi reservado pelo destino. O tempo que tivemos para, juntos, respirar a essência da felicidade.

Sim, é nostálgico. Mas não tenho o direito de esquecer. Como fazê-lo, se olho para o homem que me tornei e claramente te vejo? - Não posso! Porque, como é próprio dos grandes amores, hoje sou um ser humano melhor. Você me deu a oportunidade de mudar. E hoje, satisfeito e resignado, com a certeza plena de que valeu muito à pena, reconheço em mim a parte de você que me foi concebida com tanto cuidado.

O pouco do você impregnado no eu.

O seu cheiro de caramelo que me afoga os sentidos quando fecho os meus olhos e te encontro no plano dos meus amores eternos...

Rafael Casal / 08 de Julho de 2010
(Parte II de "Confissões pouco trabalhadas")

4 comentários:

  1. Lindo, n por ser um tx lindo em palavras, mas profundo, verdadeiro, quente, inteligente, perpiscaz, R.C. =] Parabéns!

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  2. O que toca fundo a alma, torna mudas as minhas palavras.

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  3. Perfeito!!! O final do texto, tem tudo a ver com que eu acredito.

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